São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

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sociais & cias.

ONGs que lidam com temas considerados pouco atraentes, como homossexualidade, prostituição, HIV e hanseníase, têm dificuldade para conseguir patrocinadores

Os invisíveis

Luanda Nera
colaboração para a Folha

No último dia 30 de maio, a avenida Paulista tomou conta do noticiário de todo o país e atraiu a atenção da mídia internacional com a realização da 9ª Parada Gay. Os cerca de 2 milhões de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e simpatizantes da luta pelos direitos dos homossexuais fizeram com que, pelo terceiro ano consecutivo, o evento realizado em São Paulo levasse o título de maior do mundo. Segundo a Secretaria Estadual de Turismo de São Paulo, nem o Carnaval, nem as corridas de Fórmula 1 conseguem atrair tantos turistas à capital paulista. Durante os 30 dias que antecederam o evento, centenas de atividades foram promovidas em cinemas, casas de espetáculos e centros culturais, todos com visitação recorde.
A parada foi um sucesso de público, sim, mas um fracasso financeiro. É nesse paradoxo que vive hoje a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, fundada em 1999, responsável, sozinha, por toda a organização e realização da parada paulistana. A exuberância dos 20 trios elétricos que carregaram políticos, celebridades e milhares de militantes contrasta com o cenário caótico que se acentua a cada ano. Sobrevivendo graças aos R$ 13 pagos mensalmente por 300 associados, a entidade chegou ao final da última edição do evento com mais dívidas: o déficit acumulado de R$ 150 mil, referente ao fracasso financeiro da parada de 2004, fez com que fosse cortada até a verba para alimentação dos quatro funcionários, voluntários, que trabalham na associação.
"Somos uma entidade nanica, que ninguém conhece. Movimentamos grande parte da economia da cidade, mas não conseguimos nos sustentar. Firmamos algumas parcerias, mas não temos autonomia nenhuma. Temos de aceitar as condições que a Prefeitura nos oferece para que nos emprestem palco, som e iluminação. Apenas duas empresas nos apoiaram neste ano, a Sky Net e o site For Man, mas o dinheiro não deu para cobrir nem os custos do dia da parada", afirma Nelson Matias Pereira, coordenador político e sócio-fundador da entidade.
O custo total dos eventos relacionados à Parada Gay gira em torno de R$ 800 mil. "O problema ainda é o preconceito. Não tem outra explicação. Algumas empresas manifestam interesse em nos apoiar, mas sempre acabam desistindo. É tudo velado, ninguém assume que não quer sua marca associada à causa gay. Se até janeiro do próximo ano não conseguirmos financiamento, cancelaremos a próxima parada", lamenta Pereira, que é técnico em segurança do trabalho.


"As empresas privadas ainda têm muito preconceito em apoiar causas ligadas à Aids. Só conseguimos algum apoio quando as ações envolvem crianças", afirma José Carlos Veloso, do Gapa


A crise enfrentada pelos organizadores da Parada Gay é prova de que o apoio da iniciativa privada às causas sociais ainda deixa de fora boa parte dos temas que correm o risco de não serem unanimemente aceitos pela sociedade. O problema atinge até entidades que têm tradição de projetos em determinadas áreas, como é o caso do Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids). Com 20 anos de experiência, o Gapa de São Paulo, uma das 19 filiais da rede no país, é a mais antiga instituição a trabalhar com portadores de HIV na América Latina. Hoje, sua sustentabilidade está vinculada aos recursos vindos do Ministério da Saúde.
Segundo o presidente da entidade, José Carlos Veloso, uma crise financeira teve início com o fim das doações de artistas e do financiamento de fundações internacionais, comuns nas décadas de 80 e 90: "As verbas estrangeiras foram direcionadas para as regiões Norte e Nordeste do país, consideradas mais carentes. As empresas privadas ainda têm muito preconceito em apoiar causas ligadas à Aids. Só conseguimos algum tipo de apoio quando as ações envolvem crianças. As empresas querem associar sua imagem a questões beneméritas, como infância e meio ambiente".

Preconceito e discriminação fazem parte do cotidiano da ONG Davida. Há 13 anos, a entidade luta pelos direitos das prostitutas. Gabriela Silva Leite, diretora-executiva e fundadora da ONG, também afirma que os investimentos privados se concentram em causas que não representam riscos para a imagem das empresas. É justamente a isso que ela atribui o fato de, até hoje, a entidade não ter conseguido firmar nenhuma parceria com empresas privadas, nem ter vendido nenhum anúncio para o jornal "Beijo da Rua", editado pela entidade, com tiragem mensal de 20 mil exemplares. "Já corremos muito atrás de apoio, mas nunca conseguimos. Muitas vezes, nem uma resposta recebemos. O silêncio é prova do preconceito. Acho que nem passa pela cabeça dos executivos engajar-se em uma causa como a nossa. Não é sedutor e ainda pode gerar repulsa dentro da própria empresa", diz Gabriela.
A crítica das entidades marginalizadas pela responsabilidade social empresarial atinge também a mídia. Na opinião de Artur Custódio Moreira de Souza, coordenador nacional do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), as empresas sentem-se atraídas por projetos e ações que podem lhes trazer retorno de visibilidade, o que está diretamente relacionado a números e estatísticas. "As empresas vão atrás do que é mensurável, do que dá para quantificar, do que pode ser publicado no balanço social. É difícil medir o preconceito. É mais fácil cotar quantas cestas básicas foram doadas, por exemplo", afirma Moreira de Souza. A entidade sobrevive de recursos vindos do poder público e de parcerias firmadas com entidades internacionais do terceiro setor. Desde o final de 2004, no entanto, a Morhan conta com uma parceira entre as empresas privadas. Trata-se da companhia de telefonia celular Claro, que estimula que seus funcionários do programa de voluntariado participem das atividades desenvolvidas pelo Morhan. O diretor de talentos humanos da Claro, Jorge Fornari, argumenta que a estratégia é, justamente, investir em causas que ainda não fazem parte da lista de prioridade das empresas socialmente responsáveis.


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