São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

leituras cruzadas

Informações colhidas por historiadores e pesquisadores e apresentadas em dois novos livros ajudam a entender alguns momentos pouco conhecidos da história das Forças Armadas no Brasil

Cultura e política na história militar

Oscar Pilagallo
colaboração para a Folha

Os militares deixaram o poder há 20 anos. Pode-se dizer que é muito tempo: nunca, desde a Revolução de 1930, o país viveu na normalidade democrática por um período tão longo. Pode-se dizer que não é tanto tempo assim: o regime militar, afinal, durou um ano a mais do que a fase atual.
De qualquer maneira, nas últimas duas décadas houve tempo suficiente para a historiografia brasileira se debruçar sobre a ditadura. Entrevistas, depoimentos, documentos, análises, painéis, todos os recursos foram usados para jogar luz sobre o período. Protagonistas, historiadores e jornalistas narraram episódios que, sob o regime dos generais, eram alvo da censura. Alguns desses momentos históricos, como a guerrilha, foram particularmente esquadrinhados.
Os antecedentes do golpe de 64 também foram objeto de novos estudos. Demonstrou-se que o tenentismo dos anos 20 e a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, devido ao papel político que emprestaram aos militares, estão, ainda que remotamente, na gênese do movimento que culminou com a derrubada do governo civil.
A profusão de livros enfocando o aspecto político da ação militar acabou abrindo espaço para que, recentemente, surgissem novas abordagens. Em "Nova História Militar Brasileira" (FGV, 460 págs., R$ 46), organizado por Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik Kraay, a perspectiva de alguns textos que integram o volume é a da história social e cultural. Três exemplos extraídos do livro deixam claro o novo viés.
No primeiro exemplo, Paloma Siqueira Fonseca, mestre em história social e das idéias pela UnB (Universidade de Brasília), escreve sobre a responsabilidade da Marinha pelo uso de mão-de-obra forçada na época da Independência do Brasil.
De acordo com o levantamento de Paloma, a Marinha contava com um navio-presídio, a presiganga, de que pouco se ouviu falar. A expressão é uma corruptela do inglês "press-gang", destacamento naval encarregado de recrutar à força homens para servirem na Marinha de Guerra inglesa. A presiganga, que ficava escondida atrás da ilha das Cobras, na baía da Guanabara (Rio de Janeiro), operou até 1832, quando clamores sociais e a própria precariedade física da embarcação puseram fim a esse tipo de prisão.


Segundo Peter Beattie, da Universidade Estadual de Michigan, a mobilização para a Guerra do Paraguai fortaleceu a associação entre status desonroso e serviço militar


Outro exemplo é dado por Peter Beattie, professor da Universidade Estadual de Michigan, que, ao mencionar a guerra do Paraguai, o faz de um ponto de vista social, não político ou militar. Para ele, a mobilização para a guerra (resultado da emancipação de escravos e da libertação de condenados para preencher as fileiras esvaziadas) fortaleceu a associação entre status desonroso e serviço militar.
Por último, há o exemplo que Maria Celina D'Araujo, da Fundação Getúlio Vargas, fornece, ao levantar a questão do homossexualismo nas Forças Armadas. A pesquisadora compara a situação no Brasil e em outros países para chegar à conclusão de que na América Latina, onde o homossexual é visto como ameaça à tranqüilidade da tropa, o assunto ainda é delicado. O Brasil apenas começou a estudar a possibilidade de descriminalizar o assunto na instituição. Em outros países, a homossexualidade entre militares é permitida (como é o caso de Alemanha, Canadá e Dinamarca) ou considerada assunto privado (caso de países como Estados Unidos e França). Esses enfoques enriquecem a historiografia militar, mas talvez ainda seja cedo para tirar a ênfase do aspecto político. É o que argumenta José Murilo de Carvalho em "Forças Armadas e Política no Brasil" (Jorge Zahar, 224 págs., R$ 38), uma reunião de textos recém-lançada.
O historiador leva em conta que, para o Brasil, o cenário internacional é desfavorável a intervenções militares e que a nova geração de oficiais não traz mais a marca da memória de 1964. Mas adverte para problemas pontuais. "Famílias de torturados e mortos ainda aguardam informações sobre o destino das vítimas. O comando das Forças Armadas, sobretudo do Exército, insiste na inexistência de documentos ao mesmo tempo em que resiste à abertura de arquivos", lembra ele. E adverte: "Essa ferida precisa ser tratada em nome da conciliação entre as Forças Armadas e parcela relevante da nação".
Além disso, Carvalho não está totalmente convencido de que a democracia é um caminho sem volta. "Apesar dos indicadores positivos, seria imprudente supor que já estejamos imunes a retrocessos políticos." Por quê? "A permanência de imensas desigualdades sociais e econômicas, a despeito do clima de liberdade e participação vigente no país, constitui um claro alerta de que nossa democracia ainda é incompleta e precária", completa Carvalho.
Para o autor de "Forças Armadas e Política no Brasil", se não é sensato e realista defender a inutilidade das Forças Armadas, deve-se reconhecer que elas consomem recursos avultados e precisam ter seu novo papel "discutido, justificado e definido".

Oscar Pilagallo , 49, é jornalista, editor da revista "EntreLivros" e autor, entre outros livros, de "O Brasil em Sobressalto" (Publifolha)


Texto Anterior: Sociais & cias.: Os invisíveis
Próximo Texto: Teste: De volta aos anos 80
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.