São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

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Na academia, os doutores desenvolvem pesquisas, acumulam diplomas e conquistam uma formação de excelência. Quando, porém, abandonam a universidade, seu segundo lar, em busca do primeiro emprego, esses profissionais qualificados passam pelas mesmas dificuldades de um recém-formado: falta-lhes experiência e sobra concorrência no mercado de trabalho

A idade da razão

Leandro Beguoci
da redação

Luciana Farnesi
colaboração para a Folha

De longe, o título significa glamour. De perto, o fantasma do desemprego assusta. Cerca de 77% dos doutores foram educados por famílias que fazem parte dos 10% mais ricos da população, segundo o CPS/FGV (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas), mas esses pesquisadores vivem com bolsas do governo tal como boa parte dos 10% mais pobres. Em um país em que as pessoas estudam, em média, 6 anos, os doutores passam mais de 20 anos nas universidades, mas não conseguem arrumar emprego na iniciativa privada. O conhecimento que poderia ser utilizado para o desenvolvimento de novas tecnologias fica restrito às salas de aula, onde as vagas são cada vez mais disputadas. E isso não é bom. Basta ver que os países desenvolvidos têm a maior parte de seu pessoal mais qualificado fazendo pesquisas nas empresas (leia mais nos gráficos da página 15). Esse é mais um dilema que o Brasil ainda não resolveu: precisa de doutores para se desenvolver, nunca formou tantos quanto hoje, mas não consegue criar oportunidades de emprego para essas pessoas. "No país, ainda não existe um ambiente propício à inovação tecnológica nas empresas", afirma José Fernando Perez, 60, que foi diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) durante 12 anos. Nesse período, Perez coordenou, no Brasil, o Projeto Genoma, responsável pelo seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da "praga do amarelinho".

O Estado brasileiro gasta R$ 200 mil com um doutor, de acordo com a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Esse cálculo leva em conta que a maior parte dos doutores estudou em universidades estatais e recebeu bolsas financiadas com dinheiro público.
Segundo os dados mais recentes, de 2003, o Brasil bateu seu recorde de formação de doutores: 8.094 (em 1981, eram apenas 551). No período, segundo o Institute for Scientific Information, o país triplicou sua participação na produção científica mundial. Em 1981, o Brasil respondia por 0,42% dos artigos publicados no mundo. Hoje, essa fatia é de 1,55%. As patentes brasileiras também aumentaram. No escritório dos EUA, o maior do mundo, os registros subiram de 53, em 1980, para 130, em 2003, fruto do trabalho dos 34 mil doutores em atividade no país naquele ano. A Coréia do Sul, porém, país que cresceu economicamente após investir pesado em educação e tecnologia, pulou de 33 patentes, em 1980, para 3.944 em 2003. Essa disparidade é preocupante: cada nova patente significa não apenas que a empresa que a registrou não precisará comprar aquela tecnologia como também que ela poderá vendê-la a empresas de outros países.
"Nós melhoramos as estatísticas [de qualificação da força de trabalho], mas as pessoas não sabem a dificuldade que temos em arrumar um emprego", diz Ana Paula Costa, 38, que passou os últimos três anos à procura de uma vaga no mercado de trabalho. Hoje, ela dá aulas na Universidade Mackenzie. Suas credenciais -mestrado e doutorado na USP, pós-doutorado na França- não foram sucifientes para que ela conseguisse outro emprego (leia mais no quadro ao lado).
Do ponto de vista das empresas, a questão é: por que contratar uma pessoa de 30 anos, sem experiência na iniciativa privada, se é possível colocar na mesma vaga alguém mais jovem, com mestrado e experiência de trabalho? Para o atual diretor-científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, 48, a resposta é simples: "Porque o doutor é uma pessoa treinada para resolver problemas que nunca ninguém resolveu". Segundo ele, essa capacidade deveria tornar os doutores atraentes para as empresas.


De um modo geral, as empresas brasileiras investem pouco em pesquisa por causa de quatro fatores: o custo é alto, o risco também, falta financiamento e a macroeconomia é instável


A visão das empresas brasileiras, no entanto, ainda é imediatista. Luísa Chomuni, 44, consultora da Catho, empresa de recolocação de profissionais, alerta que "as empresas ainda têm muito receio em contratar quem não tem experiência profissional". A conseqüência é direta: na hora de sugerir alguém para uma vaga na iniciativa privada, Luísa sempre indica uma pessoa com experiência.
Para aqueles que terminaram o mestrado agora e não têm a intenção de seguir carreira acadêmica, a consultora faz uma sugestão: "Entre no mercado de trabalho primeiro, ganhe experiência e, só então, se quiser, inicie um doutorado".
Por isso, as empresas brasileiras em busca de doutores procuram profissionais com outras aptidões além da criatividade e da capacidade excepcional de cruzar informações, fazer perguntas e obter respostas inovadoras. É preciso saber se comunicar e entender rapidamente como funciona a iniciativa privada.
Na base da "tentativa e erro", a Braskem, uma das maiores petroquímicas da América Latina, aprendeu como procurar os doutores de que precisa. O diretor de tecnologia da empresa, Luis Fernando Cassineli, conta que, há alguns anos, a prática mais comum era financiar o doutorado, no exterior, de um pesquisador que já fazia parte da equipe. A empresa abandonou essa estratégia quando percebeu que as pessoas voltavam ao Brasil sem ter estudado o que era de interesse da companhia. Hoje, a Braskem usa os contatos com as universidades parceiras. Segundo Cassineli, os professores que coordenam os projetos realizados nessas parcerias entendem a dinâmica da iniciativa privada e se tornam bons "caçadores de talentos" para a empresa.
Quando os pesquisadores doutores competem entre si por uma vaga, ganham os que, além da formação acadêmica, sabem se relacionar. "Não adianta ter pessoas que não se comunicam e não conseguem trabalhar em equipe", diz Cassineli. "Já tive pessoas fantásticas em termos de formação, mas zero em relacionamento. Foram embora."
Ao encontrar um doutor comunicativo, Cassineli o contrata. "O ideal é ter pessoal qualificado que fala a língua dos dois lados [da academia e da empresa]." Com um "achado" desses, ele não se preocupa com a falta de experiência profissional. "Um recém-formado em engenharia levará dois anos para se adaptar ao trabalho, enquanto os doutores levam seis meses", completa.
Já a Siemens, uma das líderes do mercado de celulares no Brasil, prefere formar seus próprios doutores. Como não encontrou na Universidade do Amazonas os pesquisadores de que precisa para sua fábrica de telefones celulares, em Manaus, a empresa fechou um acordo com a instituição: fará uma seleção de seis professores com doutorado para que eles possam lecionar na universidade. Por três anos, vai pagar seus salários. Além disso, fornecerá recursos para pesquisa, que terão de ser aprovadas pela Siemens. "A idéia é que os novos professores criem discípulos", diz Luis Mariano, 44, diretor de pesquisa e desenvolvimento da área de telecomunicações da empresa.
Método semelhante tem a Monsanto, multinacional da área agrícola. Ana Teresa Marchi, 39, diretora de recursos humanos da empresa, diz: "Como o segmento de biotecnologia ainda está definindo suas estratégias e estruturas, muitas companhias, como a Monsanto, têm firmado parcerias com universidades, buscando nelas profissionais com formação e títulos específicos". Entre 20% e 50% dos funcionários da área de pesquisa da empresa têm mestrado, doutorado ou outros títulos.

Empresas como a Siemens, a Braskem e a Monsanto são exceções na economia brasileira. De um modo geral, as empresas no Brasil investem pouco em pesquisa por causa de quatro fatores: o custo é alto, o risco também, falta financiamento e a macroeconomia é instável. Além disso, a iniciativa privada tem limitações de outra ordem, que afugentam alguns talentos. Mauro Cosentino, 35, é doutorando em física. Diz ter pedido demissão do cargo de analista financeiro sênior da Telefônica por causa da insatisfação com o mercado de trabalho. "A iniciativa privada é muito limitante. Se recebesse um convite para voltar, recusaria. Eu não teria a mesma liberdade", afirma. Por causa dessa insatisfação, trocou o salário de R$ 4.500 por uma bolsa de R$ 1.267.


"Já tive pessoas fantásticas em termos de formação, mas zero em relacionamento. Foram embora", diz Cassineli, da Braskem


Hoje, porém, o maior problema está no lado das empresas. Ronald Dauscha, presidente da Anpei (Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras), afirma: "As empresas têm medo de perder dinheiro". Por isso, preferem comprar tecnologia a criá-la. Segundo o Banco Central, o Brasil gastou, em 2002, US$ 1,582 bilhão (cerca de R$ 5,5 bilhões) só com tecnologia estrangeira. De acordo com o IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 67% das empresas de capital nacional que inovaram em 2000 atribuíram baixa importância à área de pesquisa e desenvolvimento.
Para as empresas, ao comprar tecnologia, o retorno financeiro é mais rápido e o risco, bem menor -a desvantagem é a dependência. Dauscha explica que o "pacote" de tecnologia vem fechado. Na invenção seguinte, a empresa não pode se atualizar sozinha. Com isso, o problema do desemprego de doutores se agrava. Para se ter uma idéia, em todo o país existe o chamado "efeito diploma": a possibilidade de conseguir um emprego tende a subir quando a pessoa cumpre uma etapa dos estudos. Nos EUA, a taxa de desemprego de uma pessoa que terminou o doutorado ficou em 1,3% em 2001. Em algumas áreas, como a de ciências da computação, a taxa de desemprego foi de 0,4%. Não há dados sobre os doutores brasileiros, mas entre os mestres formados no país, por exemplo, a taxa de desemprego chega a 15%, segundo o CPS/FGV (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas). No Brasil, o acúmulo de conhecimento não se traduz em facilidade.
Mesmo nas universidades, porto visto como seguro para muitos doutores, a situação é difícil: por causa dos altos salários, as particulares estão demitindo doutores para substituí-los por mestres ou bacharéis. Além disso, é pequena a verba que essas instituições destinam à pesquisa. Enquanto as universidades públicas aplicaram, em 2003, mais de R$ 3 bilhões em pesquisa, os recursos aplicados pelas particulares foram de R$ 270 milhões, segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Por outro lado, um emprego nas públicas está cada vez mais difícil. Graças ao aumento da quantidade de cursos de pós-graduação, em 2003 formaram-se quatro vezes mais doutores que dez anos antes.
Além disso, há o problema da falta de verbas. "Nós precisamos aprender a nos desenvolver, mas a universidade parou de contratar, não há recomposição do corpo docente", afirma Alberto Santoro, professor de física na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e um dos mais influentes físicos brasileiros -foi convidado pelo norte-americano Leon Lederman, ganhador do Prêmio Nobel de Física, para participar da equipe internacional que provou a existência dos top quark, partículas do núcleo do átomo.
Se nem a esfera privada nem a pública conseguem absorver esse contingente, o resultado é que os brasileiros mais bem formados não possuem a empregabilidade que seria de se esperar.
O governo diz que pretende mudar essa situação. "Nossa missão é criar políticas públicas e garantir condições macroeconômicas favoráveis ao desenvolvimento", diz Odilon Antonio Marcuzzo do Canto, diretor de desenvolvimento científico e tecnológico da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), entidade ligada ao MCT. Ronald Dauscha, da Anpei, concorda. Ele aponta a Lei de Inovação, aprovada em novembro do ano passado, como tendo esse propósito. Três itens, contudo, ainda não foram regulamentados: compras tecnológicas governamentais, subvenção econômica e regime fiscal favorável. "Se esses pontos forem bem trabalhados, as empresas terão interesse em investir em pesquisa porque enxergarão o governo como sócio, e contratarão um doutor", afirma. "Nos últimos 50 anos, investiu-se muito na academia. Então, o lado acadêmico está muito bem, obrigado. Agora é hora de investir em pesquisa e desenvolvimento."


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