São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005 |
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sabor do saber Pegar para ver
Rubem Alves
Ai, que mau teórico eu
sou! Não admira que rigorosos professores de
pós-graduação freqüentemente
repreendam seus orientandos
por incluir citações minhas nos
seus projetos de tese. "Rubem Alves não é cientista. Ele é um escritor!" Esses professores estão cobertos de razão. Não sou cientista. A ciência
pensa por meio de conceitos abstratos. Eu penso por meio de
imagens. São imagens que me
fazem pensar. Mais do que isso: é
por meio delas que tento ensinar. Ao convocar minhas idéias
para escrever este artigo, foram
as imagens que acudiram em
meu socorro.
Custou-me tempo para compreender que as crianças vêem com as mãos. O puro "ver" não lhes é suficiente. O "ver" só lhes interessa como meio para se tocar um objeto. Pegar para ver. É o tato que dá sentido à vista. O nenezinho vê, estende os braços, pega o objeto e o leva à boca, que tem uma dupla função. Primeiro, ela suga o leite do seio da mãe. Função prática. O seio é como um objeto da "caixa de ferramentas". Depois, a boca sente a maciez deliciosa do seio. Prazer tátil. O seio é como um objeto da "caixa de brinquedos". Depois que o leite seca, cessando assim a função prática de alimentar que o seio tem, a criança ainda quer continuar a sugar. Por que esse gesto inútil? Porque a sensação tátil é gostosa. Essa relação primitiva entre a boca e o seio contém toda uma teoria metafísica: o mundo é comida. Mais do que comida, o mundo é macio. É por isso que aquele que ama deseja beijar o seio da mulher amada. Parodiando Santo Agostinho: "O que é que beijo quando beijo o seio da mulher amada?". O poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926) via, no rosto da amada, estrelas e constelações tranqüilas. Beijo o seio, sim, mas também um mundo que deve ter a maciez do seio. Os bichos de pelúcia que as crianças abraçam e os travesseiros macios e perfumados que abraçamos não contêm uma lição de metafísica semelhante, uma teoria de como o mundo deveria ser? O filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) chama a atenção para a "obsessão ótica" da nossa tradição científica. A palavra "teoria" vem do grego theoria, que quer dizer "contemplar", "olhar". Para se ver, é preciso que o objeto esteja distante dos olhos e do corpo. Nossa tradição separou a visão do toque, mas as crianças se recusam a esse corte. Nas lojas de brinquedos, os pais conscientes dizem aos filhos pequenos: "Mãozinha para trás...". Eles sabem que, nas crianças, a visão quer tocar. Bachelard nos pergunta se a matéria não tem uma realidade que só pode ser conhecida pelo tato. O jeito de cumprimentar, de abraçar, não dá a conhecer uma pessoa? Aquele "toque" no braço de Fernando Pessoa (no poema "Tato") o levou a uma experiência de mundo. Ele termina seu poema com "Assim a brisa nos ramos diz uma imprecisa coisa feliz...". Não é o toque só pelo prazer, é também para aprender. Veja o exemplo dos livros. Todos sabem que eles são feitos para ser lidos. Eles são dados à visão. Mas antes de gozar a sua leitura, eu gozo o livro como objeto tátil. Eu o seguro nas minhas mãos, sinto a textura da capa, das folhas. Nós o conhecemos primeiro com as mãos. Há livros que pedem para ser acariciados. Minha mão alisando um livro: essa experiência pode provocar meu desejo de lê-lo ou não. O tato contém um saber, talvez uma provocação ao saber. Ele nos faz pensar. Teríamos então de pensar o tato como uma das experiências essenciais que devem acontecer no espaço escolar. Isso porque o tato incita a inteligência. Há muitos pensamentos que brotam das mãos. Uma mão ferida pensa um martelo. Por que haveria o cérebro de pensar o martelo se a mão não estivesse ferida? Uma mão que segura um cassetete tem, necessariamente, de fazer o cérebro pensar em golpes, da mesma forma que um revólver na mão, ainda que sem balas, nos obriga a fazer pontaria. A ostra constrói a pérola por causa do tato. O grão de areia a faz sofrer. Seu corpo então pensa uma coisa lisa que não a faça sofrer. Nunca li nada sobre a relação entre o tato e a inteligência. Essas são minhas primeiras idéias. Não sei como ligá-las ao espaço escolar, mas sei que o espaço escolar deve ser como o seio: deve dar leite e ser macio. Como o seio da minha primeira professora, dona Clotilde... Rubem Alves, 71 (tempus fugit), educador e escritor, está tentado a escrever suas memórias imaginadas. Texto Anterior: caminho das pedras Próximo Texto: Para conhecer Índice |
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