São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

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caminho das pedras

1. As telas "Judite e Holofernes" (1595) e "A Decapitação de João Batista" (1608), do italiano Polidoro Caravaggio (1496-1543), agridem pela crueldade e violência deliberada. A respeito do pintor, o crítico inglês John Ruskin escreveu: "[Ele demonstra ter] sinais evidentes de uma mente doentia, má e reprimida (...), a perene busca e prazer pelo horror, pelo feio e pela sujeira". Para executar "A Morte da Virgem" (1606), Caravaggio usou como modelo o cadáver de uma prostituta. Em "A Ressurreição de Lázaro" (1609), forçou seus horrorizados modelos a segurar um cadáver, sob a ameaça de um punhal.

2. O francês Marcel Duchamp (1887-1968) foi o mais inquieto dos artistas do século 20. Uma de suas obras mais conhecidas é um urinol de banheiro público colocado na posição horizontal. Duchamp foi o grande catalisador da arte de vanguarda que, junto com os dadaístas, abriu fronteiras que criaram uma nova vertente. Dali em diante, todo tipo de material e linguagem passou a ser aceito.

3. Mesmo o espanhol Pablo Picasso (1881-1973), reconhecido pela beleza de seus quadros, produziu obras deliberadamente agressivas que, por estarmos acostumados a ver, não causam tanto impacto quanto causaram à época em que foram criadas. É o caso de "As Donzelas de Avignon" (1907), tela na qual Picasso zomba de duas das mais óbvias convenções utilizadas para criar uma ilusão de realidade: o sombreado para os volumes e as perspectivas para o espaço. Em "Guernica" (1937), obra que retrata o horror da Guerra Civil Espanhola, o artista traz uma manifestação pictórica de episódios violentos numa atmosfera angustiante e trágica que exprime a desumanidade do homem contra seus iguais.

4. Até hoje, no Museu do Louvre, em Paris, o quadro "Boi Esquartejado" (1655), pintado pelo holandês Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), causa nojo em parte dos visitantes que, incomodados, questionam: "Que feio! Isso é arte?".

5. Goya também faz parte do rol de artistas que, além de buscar a beleza em suas obras, abriu exceções para trabalhos aterradores, como em "Saturno Devorando um de Seus Filhos" (1819). Esse quadro mostra uma cena antropofágica de um corpo humano mutilado pelas mordidas de um gigante.

6. Um dos principais expoentes do expressionismo, o norueguês Edvard Munch (1863-1944), se especializou em pintar imagens angustiantes, como em sua mais famosa tela, "O Grito" (1893). Um quadro menos conhecido do pintor, mas igualmente perturbador, é "A Dança da Vida" (1900).

7. O austríaco Hermann Nitsch foi um dos pioneiros da "body art" ­a arte feita no próprio corpo, com piercings, implantes, escarificações e tatuagens­ e fundou o teatro de orgia e mistério, em que performances são encenadas em seu castelo Schloss Prinzendorf, na Áustria. Seus espetáculos são elaboradas cerimônias que incluem sacrifício de animais. Depois disso, os espectadores se banham ­literalmente­ em sangue, vísceras e esterco de gado, com o acompanhamento musical de um coral e de uma orquestra.

8. Vários pintores do século 20 utilizaram temas e modelos nada belos, como foi o caso do irlandês Francis Bacon (1909-1992). Além de suas figuras humanas distorcidas, parecendo mutiladas, ele também usou como modelo carcaças de boi que levava para seu ateliê. Lá, elas apodreciam enquanto Bacon as pintava.

9. A tela "Abaporu" (1928), da brasileira Tarsila do Amaral (1886 - 1973), amargou décadas de ostracismo no ateliê da artista. Hoje, porém, é uma das obras mais comentadas e valorizadas comercialmente da arte brasileira. Os quadros da também brasileira Anita Malfatti (1889 -1964), contemporânea de Tarsila, foram considerados por Monteiro Lobato como não apenas feios, mas paranóicos.

10. Não se surpreenda se obras hoje consideradas "difíceis" forem expostas, no futuro, como paradigmas de excelências. Por isso, fique atento a artistas da atualidade como Gunther Von Hagens, Vito Aconti, Maria Abramovic e Richard Gibeson. A arte imprime seus padrões estéticos acima dos padrões da sociedade e da própria história. Afinal, o artista tem como privilégio compreender a incerteza do real, não transmitir certezas.


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