São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 2005

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Sabor do saber

A avaliação da performance das escolas

Rubem Alves
colunista da Folha

O título mais simples para esse artigo seria: "Avaliação da educação". Mas não quero misturar "educação" com aquilo que as escolas fazem. A educação é algo que transborda os limites das escolas. Por vezes, ela se choca com as escolas. Acho que foi o escritor Mark Twain quem disse que não permitia que a escola interferisse na sua educação. Educação é aquilo que passa a fazer parte do nosso ser. Parte do que sou tem a ver com a música erudita sobre a qual nada se disse nas escolas que freqüentei. Era como se não existisse. Não fazia parte do programa. O mesmo é verdadeiro em relação ao meu prazer em ler, escrever, contemplar a natureza. Essas coisas são parte de mim mesmo, mas não foi nas escolas que as aprendi. Quando um professor tenta ensinar algo, ele tem de pressupor que aquilo é importante, não vai ser esquecido, vai fazer uma diferença na vida do seu aluno. Caso contrário, seu trabalho não terá sentido. Assim, ele deve ter a curiosidade de saber sobre o destino das informações e habilidades que tentou ensinar. O que aconteceu com elas? Quero sugerir um método para se fazer isso valendo-me de uma metáfora. Imagine que você resolveu se dedicar ao negócio de fabricação de salsichas. Para transformar carne em salsichas, há uma máquina.


Se os examinandos se prepararem para o exame, os resultados não revelarão o que realmente sobrou, mas o que foi colocado na memória na última hora


Numa das extremidades da máquina coloca-se a carne. Aperta-se um botão. A máquina se põe a funcionar. Da outra extremidade saem as salsichas, prontinhas. Para se avaliar se a máquina é comercialmente vantajosa, basta comparar o peso da carne que foi colocada no funil de entrada com o peso das salsichas produzidas. Se, na entrada, foram colocados 100 kg de carne e saíram 95 kg de salsichas, a máquina é ótima, mas se só saírem 10 kg de salsichas, a máquina não presta. Imaginei que se poderia avaliar o desempenho das escolas por meio de um exame elaborado segundo o modelo da máquina de salsichas. O objetivo seria comparar o que entrou com o que ficou. Freqüentei escolas por 17 anos. Multipliquei pelo número de meses, dias, horas e anos: cheguei ao número 16.320. Esse é o número de horas que passei assentado em carteiras ouvindo as coisas que os professores tentavam me ensinar. É claro que esse número deve estar errado. De qualquer forma, é muito grande o tempo que se passa assentado nos bancos escolares. O que sobrou? O exame seria como descrevo a seguir. Primeiro: o programa seria constituído de tudo, absolutamente tudo que se pretendeu ensinar nesses 17 anos, do primeiro ao último ano. Segundo: aqueles que vão fazer o exame não assinarão os seus nomes porque o que se procura não é o desempenho individual, mas o desempenho da máquina escolar. Terceiro: será proibido freqüentar cursos preparatórios para tais exames. Será proibido também recordar a matéria. Se isso fosse feito, o propósito do exame seria abortado. Imagine que um diabético tem de fazer um exame de sangue para testar seu nível glicêmico. Mas, ele, malandro, querendo enganar o médico, na véspera do exame só come alface com bife e no dia seguinte, pela manhã, toma um comprimido de Amaril. O resultado do exame seria totalmente falso. O aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento fez o seu trabalho. O exame que proponho quer saber o que sobrou. Se os examinandos se prepararem para o exame, os resultados não revelarão o que realmente sobrou, mas o que foi colocado na memória na última hora. Eu me sairia muito mal. Não me lembro das classificações das rochas. Lembro-me dos nomes "dolomitas" e "piroclásticas", mas não sei o que significam. Esqueci-me do "crivo de Eratóstenes". Não sei fazer raiz quadrada. Não sei onde se encontra a serra da Mata da Corda. Também me esqueci das dinastias dos faraós e dos nomes dos imperadores romanos. Lembro-me do princípio de Arquimedes, mas não sei a lei de Avogadro. Não aprendi latim, o que me causa grande dor porque latim é música. Lembro-me de pouquíssima coisa sobre análise sintática, o que não me faz falta para escrever. Dos 100% de saberes que as escolas tentaram enfiar dentro de mim, só sobrariam uns 10%. Você depositaria suas economias, mensalmente, num fundo de investimento, por 17 anos, se você soubesse que depois desse tempo você receberia só 10% do que você depositou? Alguns concluirão que a culpa é dos professores. Outros, que a culpa é dos alunos. Não creio que a culpa seja dos professores ou dos alunos. Acho mesmo é que a culpa é da carne que se põe na máquina: ela está estragada. As salsichas cheiram mal. O nariz as reprova. Se forem comidas, elas produzirão perturbações gástricas. O jeito é vomitá-las. Concluo: a performance das escolas melhorará se a carne estragada for substituída por uma carne que produz salsichas apetitosas.

Rubem Alves, quantos anos não tem: 71 (esses 71 já se foram). Quantos anos ainda tem, só Deus sabe. No momento, escrevendo o livro "Memórias de Infância".


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