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FERNANDO GABEIRA
Depois da Copa, as caneladas de campanha
De quatro em quatro
anos, temos a Copa do
Mundo e, logo depois dela, as eleições no Brasil. Isso não quer dizer
que elas estejam separadas no
tempo. Enquanto explodem os foguetes comemorando gols, um pequeno exército industrial já trabalha nas camisetas, nos panfletos, nos cartazes e nos outdoors.
Nos intervalos das partidas de
futebol, reuniões febris, promessas de apoio mútuo, discretas rivalidades, um pequeno universo
abafado pelo som das cornetas escondido pela muralha de bandeiras verdes e amarelas gradativamente vem à tona.
Existem dois tipos de campanha. As presidenciais, que acontecem na TV, com rápidas e seguras
incursões dos candidatos nas
ruas, e as parlamentares, com
menos tempo de vídeo e que dependem do contato com eleitores.
Em ambas, a questão financeira é crucial. Sem dinheiro, quase
ninguém existe. Mesmo os que
dispõem de certa simpatia popular precisam dele para dizer que
são candidatos, contar o que fizeram, divulgar seus quase patéticos slogans: "José da Silva, honestidade e trabalho"; "Jorge Vieira,
com este você pode contar".
De uns tempos para cá, esse jogo
pesado do ponto de vista financeiro começou a ter uma outra expressão: a guerra de dossiês contendo denúncias contra os candidatos. Aquela sensação de sujeira
que as eleições trazem às ruas
com cartazes e pichações estende-se também à mídia, eletrizada
com o bombardeio moral.
Collor foi o precursor dessa tática, contratando a ex-mulher de
Lula. Mas ambos estavam fora da
máquina do Estado. O que pode
acontecer agora não tem precedente, pois envolve também o
aparato oficial, com tentáculos
por todo o território nacional.
No meu caso, não me sinto vulnerável porque nas eleições nada
de novo aparece contra mim, a
não ser a confirmação dos boatos
que circulam no cotidiano. Não
sou perigoso a ponto de ameaçar
a barreira do preconceito já construída ao meu redor. Há até um
certo lirismo dos meus adversários de 1989, que espalharam que,
se eu fosse eleito, todos os telefones públicos seriam pintados de
cor-de-rosa. E criaram o bem
construído slogan: "quem senta,
fuma e cheira vota no ...". Quem
dera se isso fosse mesmo verdade.
Não gastaria tanta sola de sapato, tanta saliva, tantas noites
maldormidas para conseguir a
modesta votação que me leva ao
Parlamento.
O problema é diferente com Lula. A notícia de que a Polícia Federal seguiu seus passos por 426
dias são inquietantes. Usaram
uma testemunha falsa, dizendo-se falsamente ex-prefeito de São
Bernardo, estabeleceram uma
falsa ligação com o tráfico de drogas e realizaram uma das mais
vergonhosas operações do Brasil
contemporâneo. Por isso faço
uma distinção clara entre o meu
destino e o de um presidenciável.
Há um processo contra mim porque importei sementes de cânhamo. Um ex-funcionário do Itamaraty foi acusado da mesma
coisa e conseguiu não só a absolvição, como reaver suas sementes.
A Polícia Federal apenas me incomoda, logo posso tratá-la sem
nenhum rancor. Mas um partido
que sofre essa agressão aos seus
direitos fundamentais não pode
ser ingênuo. Sem alimentar revanchismo, terá de compreender
que esse setor da polícia precisa
ser aniquilado politicamente. É
uma negação da democracia que
exige um comportamento imparcial de autoridades que atuam
num campo tão sensível.
Jamais fui agressivo com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Usei uma ou outra ironia
mais pesada, algo que intelectual
compreende e até perdoa.
Porém, nesse caso particular,
não posso imaginar como ele
olhará nos olhos de Lula, nos
olhos de todos que lutamos pela
democracia, se mantiver seu silêncio sobre esse golpe baixo de
setores da PF, que usaram papel
timbrado da Câmara e passaram
quase dois anos investigando Lula a partir da denúncia de um certo Tenório Cavalcanti, ex-prefeito
de São Bernardo.
Vimos na Copa como juízes podem derrotar grandes equipes.
Mas os erros de arbitragem e os
carrinhos sem bola vão parecer
um piquenique diante de uma
campanha eleitoral que começa
com um campeonato de dossiês.
Vou sentir saudades do meu vizinho corneteiro. Ele começava a
tocar corneta dentro de casa, e a
mulher o expulsava para a janela.
Havia lei e ordem em Copacabana. No intervalo do jogo, ouvíamos o maciço fluxo da descarga
dos banheiros e logo depois do almoço desapareciam os vestígios
sonoros da Copa .
A primeira eleição do século tinha tudo para questionar a premissa que encantou o século passado e, de uma certa forma, morreu com ele: os fins justificam os
meios. Mergulhamos em trevas
imprevisíveis.
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