São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Depois da Copa, as caneladas de campanha

De quatro em quatro anos, temos a Copa do Mundo e, logo depois dela, as eleições no Brasil. Isso não quer dizer que elas estejam separadas no tempo. Enquanto explodem os foguetes comemorando gols, um pequeno exército industrial já trabalha nas camisetas, nos panfletos, nos cartazes e nos outdoors.
Nos intervalos das partidas de futebol, reuniões febris, promessas de apoio mútuo, discretas rivalidades, um pequeno universo abafado pelo som das cornetas escondido pela muralha de bandeiras verdes e amarelas gradativamente vem à tona.
Existem dois tipos de campanha. As presidenciais, que acontecem na TV, com rápidas e seguras incursões dos candidatos nas ruas, e as parlamentares, com menos tempo de vídeo e que dependem do contato com eleitores.
Em ambas, a questão financeira é crucial. Sem dinheiro, quase ninguém existe. Mesmo os que dispõem de certa simpatia popular precisam dele para dizer que são candidatos, contar o que fizeram, divulgar seus quase patéticos slogans: "José da Silva, honestidade e trabalho"; "Jorge Vieira, com este você pode contar".
De uns tempos para cá, esse jogo pesado do ponto de vista financeiro começou a ter uma outra expressão: a guerra de dossiês contendo denúncias contra os candidatos. Aquela sensação de sujeira que as eleições trazem às ruas com cartazes e pichações estende-se também à mídia, eletrizada com o bombardeio moral.
Collor foi o precursor dessa tática, contratando a ex-mulher de Lula. Mas ambos estavam fora da máquina do Estado. O que pode acontecer agora não tem precedente, pois envolve também o aparato oficial, com tentáculos por todo o território nacional.
No meu caso, não me sinto vulnerável porque nas eleições nada de novo aparece contra mim, a não ser a confirmação dos boatos que circulam no cotidiano. Não sou perigoso a ponto de ameaçar a barreira do preconceito já construída ao meu redor. Há até um certo lirismo dos meus adversários de 1989, que espalharam que, se eu fosse eleito, todos os telefones públicos seriam pintados de cor-de-rosa. E criaram o bem construído slogan: "quem senta, fuma e cheira vota no ...". Quem dera se isso fosse mesmo verdade. Não gastaria tanta sola de sapato, tanta saliva, tantas noites maldormidas para conseguir a modesta votação que me leva ao Parlamento.
O problema é diferente com Lula. A notícia de que a Polícia Federal seguiu seus passos por 426 dias são inquietantes. Usaram uma testemunha falsa, dizendo-se falsamente ex-prefeito de São Bernardo, estabeleceram uma falsa ligação com o tráfico de drogas e realizaram uma das mais vergonhosas operações do Brasil contemporâneo. Por isso faço uma distinção clara entre o meu destino e o de um presidenciável. Há um processo contra mim porque importei sementes de cânhamo. Um ex-funcionário do Itamaraty foi acusado da mesma coisa e conseguiu não só a absolvição, como reaver suas sementes.
A Polícia Federal apenas me incomoda, logo posso tratá-la sem nenhum rancor. Mas um partido que sofre essa agressão aos seus direitos fundamentais não pode ser ingênuo. Sem alimentar revanchismo, terá de compreender que esse setor da polícia precisa ser aniquilado politicamente. É uma negação da democracia que exige um comportamento imparcial de autoridades que atuam num campo tão sensível.
Jamais fui agressivo com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Usei uma ou outra ironia mais pesada, algo que intelectual compreende e até perdoa.
Porém, nesse caso particular, não posso imaginar como ele olhará nos olhos de Lula, nos olhos de todos que lutamos pela democracia, se mantiver seu silêncio sobre esse golpe baixo de setores da PF, que usaram papel timbrado da Câmara e passaram quase dois anos investigando Lula a partir da denúncia de um certo Tenório Cavalcanti, ex-prefeito de São Bernardo.
Vimos na Copa como juízes podem derrotar grandes equipes. Mas os erros de arbitragem e os carrinhos sem bola vão parecer um piquenique diante de uma campanha eleitoral que começa com um campeonato de dossiês.
Vou sentir saudades do meu vizinho corneteiro. Ele começava a tocar corneta dentro de casa, e a mulher o expulsava para a janela. Havia lei e ordem em Copacabana. No intervalo do jogo, ouvíamos o maciço fluxo da descarga dos banheiros e logo depois do almoço desapareciam os vestígios sonoros da Copa .
A primeira eleição do século tinha tudo para questionar a premissa que encantou o século passado e, de uma certa forma, morreu com ele: os fins justificam os meios. Mergulhamos em trevas imprevisíveis.



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