São Paulo, segunda, 2 de fevereiro de 1998

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OLHA O TREM
Já em 1885, ano das primeiras exibições dos irmãos Lumière, o veículo invadiu a tela e nunca mais partiu
Cinema nasceu e cresceu sobre os trilhos

especial para a Folha

O filme está chato? Basta colocar um trem chegando à estação, as rodas rangendo metalicamente, a fumaça poluindo o ambiente, as pessoas que aguardam, os passageiros que descem, os carregadores, os maquinistas... o burburinho. Os trens não servem só para transportar, mas também para animar a festa do cinema.
O cinema nasceu com um trem invadindo a sala de projeção. "L'Arrivée du Train" (Chegada de um Trem) foi um dos filmes exibidos pelos irmãos Lumière por volta de 1895, ano1 da arte cinematográfica. Segundo consta, a platéia se assustou com aquela locomotiva que "ameaçava" sair da tela.
E foi um trem que marcou o primeiro faroeste e o primeiro filme norte-americano de peso.
"The Great Train Robbery" (O Grande Assalto ao Trem), que Edwin S. Porter rodou em 1903, copiava filmes britânicos.
Após roubar um carro do correio, bandidos assaltam um trem, são perseguidos e, por fim, presos por policiais ... a cavalo.
O filme serviu de modelo para inúmeras produções, de "O Assalto ao Trem Pagador" (1962), de Roberto Farias, a "O Primeiro Assalto ao Trem" (1979), de Michael Crichton.
Mas o filme não serviu de modelo para o assalto real ao trem pagador inglês efetuado nos anos 60, com a mãozinha de Ronald Biggs -já em 1855, ocorria o primeiro assalto a um trem.

Premonição
De "The Great Train Robbery" para a frente, o trem não saiu de cartaz. Às vezes, cumpriu até funções premonitórias.
Em "Le Tunnel sous la Manche" (O Túnel sob a Mancha), de 1907, Georges Méliès mostrava um choque de trens no túnel.
No final da semana passada, uma das companhias que operam o sistema Eurostar, o trem que cruza o canal da Mancha, quase faliu.
Há sempre um trem para servir às tramas mais verazes ou absurdas. São tantos filmes que seguem esse roteiro quanto as estrelas da antiga Metro.
Quase sempre, o trem -ou a estação ferroviária, ou os passageiros, ou os maquinistas- é um elemento circunstancial, um ator coadjuvante.
Em "Pacto Sinistro" (1951), de Alfred Hitchock, dois homens trocam favores criminosos num vagão de passageiros; em "Matar ou Morrer" (1952), de Fred Zinnermann, um bandido deve chegar no trem do meio-dia; em "Sangue sobre a Índia" (1959), de J. Lee Thompson, um oficial inglês protege o filho de marajá numa viagem.
E mais, em "Quinteto da Morte" (1955), de Alexander Mackendrick, bandidos resolvem diferenças numa passagem de nível.
Já em "Quanto mais Quente Melhor" (1959), de Billy Wilder, músicos travestidos se juntam a uma banda feminina numa excursão de trem; em "Quinteto Irreverente" (1982), do italiano Mario Monicelli, amigos se despedem, com tapas no rosto, dos passageiros de um trem.
Os trens também foram "protagonistas". "A General" (1927), de Buster Keaton e Clyde Bruckman, é um exemplo clássico.
Combate a nazistas
Keaton é o maquinista do Sul que conduz a locomotiva The General na guerra civil norte-americana, cruzando as linhas inimigas.
A "estrela" do filme era uma locomotiva já usada em "Nossa Hospitalidade" (1923), de Keaton e Jack Dlystone.
"O Trem" (1964), de John Frankenheimer, conta uma história da resistência francesa.
Burt Lancaster é o chefe de estação que luta para que os nazistas não levem um trem repleto de obras de arte.
No filme "O Expresso de Von Ryan" (1965), de Mark Robson, é Frank Sinatra quem luta, para libertar 600 prisioneiros, contra os nazistas.
Na série "Expresso", aliás, há muito mais. Marlene Dietrich enfrenta o amor e a revolução em "O Expresso de Shangai" (1932), de Josef von Sternberg.
Joseph Cotten é capturado por bandidos em "O Expresso de Pequim" (1951), de William Dieterle; Gene Wilder vive paixões e confusões em "Expresso de Chicago" (1976), de Arthur Hiller.

Na paz e na guerra
"Aliança de Aço" (1938), de Cecil B. De Mille, conta a história da construção da estrada de ferro que liga os Estados Unidos de costa a costa. "Trens Estreitamente Vigiados" (1966), de Jiri Menzel, mostra a Segunda Guerra a partir da perspectiva de uma estação.
"Quando a Mulher Erra" (1953), de Vittorio De Sica, narra uma história de adultério no cenário da Stazione Termini, de Roma.
Às vezes, o protagonista é o profissional ferroviário. Em "La Roue" (A Roda), que Abel Gance rodou em 1921, Séverin Mars é o maquinista que adota uma órfã, apaixonando-se.
Em "O Ferroviário" (1956), de Pietro Germi, o próprio diretor interpreta um maquinista com problemas em casa.
Em "O Homem da Linha" (1986), de Jos Stelling, Jim Van Der Woude é um ferroviário solitário.
Se falta emoção, o trem pode ser a solução. É assim em "Assassinato no Expresso Oriente" (1974), de Sidney Lumet, uma história de Agatha Christie sobre trilhos; em "A Travessia de Cassandra" (1976), de George Pan Cosmatos, com terroristas e vírus a bordo; em "Expresso para o Inferno" (1985), de Andrei Konchalovsky, com fugitivos num trem sem freios.

Piada
Os trens também podem rir. Isto é, propiciar boas gargalhadas. "Viuvinha Indomável" (1959), de Richard Quine, mostra uma mulher em luta com o dono de uma ferrovia.
"Butch Cassidy" (1969), de George Roy Hill, conta com humor as peripécias de uma dupla (Robert Redford e Paul Newman) que vive de assaltar trens e bancos.
"Jogue a Mamãe do Trem" (1987), de Danny DeVito, é uma paródia alucinada ao filme "Pacto Sinistro".
Mais longe das gargalhadas, nos filmes de David Lean há sempre um trem na paisagem. Em "Desencanto" (1945), o mais elogiado de seus filmes intimistas, uma estação ferroviária é o cenário para uma história de amor.

Grandes produções
O "cinemão" também investiu no transporte sobre os trilhos. Nas superproduções "A Ponte do Rio Kwai" (1957), "Lawrence da Arábia" (1962) e "Doutor Jivago" (1965), por exemplo, os trens fazem parte da trama.
Em outras paragens, o trem tem serventia mais poética.
Em Federico Fellini, ele é o veículo que conduz a outras realidades. É assim em "Os Boas-Vidas" (1953), no qual a estação ferroviária é a única saída para os rapazes de província, e em "A Cidade das Mulheres" (1980), no qual a travessia de um túnel é uma passagem para o sonho.
Ação, e muita, também é uma presença significativa em várias produções. Um trem descarrila em "O Maior Espetáculo da Terra" (1952), de De Mille; outro atravessa uma parede em "Joe Kidd" (1972), de John Sturges.
Um outro leva refugiados em "O Último Trem" (1973), de Pierre Granier-Deferre; um terceiro conduz traficantes de armas em "Um Trem do Inferno" (1976), de Tom Gries.
Um trem vai, um trem vem. E o cinema continua fiel a "L'Arrivée". (FEDERICO MENGOZZI)



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