São Paulo, segunda, 2 de fevereiro de 1998

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OLHA O TREM
Espíritos letrados da época não ficaram boquiabertos com a invenção
Poesia legitimou o veículo com um século de atraso

especial para a Folha

É difícil para o homem atual imaginar o que foi, na primeira metade do século passado, o surgimento dos trens.
Não se trata apenas do caso de que as pessoas estavam acostumadas a viajar -a pé, a cavalo ou de carroça, diligência e carruagem- por estradas pedregosas e poeirentas na primavera e no verão, lamacentas no outono e geladas no inverno, toscas, precárias, que tornavam desconfortável quando não perigosa a mais breve das jornadas e inviabilizavam toda e qualquer previsão segura de duração.
Acontece também que o trem surgiu num mundo onde virtualmente não havia máquinas. As poucas máquinas a vapor serviam à mineração de carvão e se encontravam removidas da visão e talvez até mesmo da consciência do grosso da humanidade.
Nesse mundo onde, descontados os moinhos de água e vento, tudo o que de alguma forma se movia era acionado pelos músculos dos homens ou dos animais, o trem entrou causando um estranhamento que nada seria capaz de despertar no homem de hoje.
Ele era feito (embora não só) de metal numa civilização construída de pedra e de madeira; se movia por conta própria; era mais rápido do que quase tudo que se conhecia; avançava em linha reta, num ritmo regular (e no mundo pré-industrial há pouquíssimas linhas retas e movimentos regulares), e era capaz de transportar mais gente por terra do que um navio pelo mar.
É com o trem que a maioria dos seres humanos adentrou um novo mundo, o da industrialização e da modernidade, uma nova concepção de universo.
Por alguma razão, porém, os espíritos letrados já estavam preparados para ele. A arte que a um tempo domina o século 19 e chegou nele ao seu apogeu, a prosa de ficção, o romance, particularmente o realista e o naturalista, pareceria, à primeira vista, ser o meio ideal dentro do qual a surpresa da nova invenção se patentearia.
É curioso, portanto que, passar em revista os franceses de Balzac, Dumas e Stendhal a Flaubert, os ingleses de Dickens e Trollope a George Eliot, os russos de Gógol a Turguêniev, Dostoiévski e Tolstoi, equivale a se deparar não com a ausência de ferrovias, mas com a falta de surpresa diante delas.
Todos eles as mencionam aqui e ali, mas é como se, no século do progresso, do aço e do carvão, nada houvesse capaz de deixá-los boquiabertos.
Quando uma ferrovia surge num romance desse período é quase como se ela já estivesse há séculos no seu lugar. Ana Karenina, a personagem do romance homônimo de Tolstoi, mata-se atirando-se sob um trem, mas isso já se tornara mais corriqueiro do que se jogar de um precipício ou do campanário de uma igreja.
Corcel alado
Só mais tarde, perto do fim do século, é que o novo veículo assumirá um pouco mais de centralidade em uma ou outra narrativa. Por exemplo, de um Zola (em "A Besta Humana"), ou nesse ou naquele conto de Maupassant .
Os poetas do século passado andavam, sem dúvida, de trem, mas sua poesia continuava cavalgando algum corcel alado e só no século 20 aparece um poema importante atravessado do começo ao fim por uma linha de ferro. Trata-se de "Prosa do Transiberiano e da Joaninha de França" (Paris, 1913), de Blaise Cendrars (1887-1961).
O poeta, um suíço cujo verdadeiro nome era Frédéric Louis Sauser, escrevia em francês, foi um dos pais da modernidade, perdeu um braço na Primeira Guerra e, visitando em 1924 o Brasil, fez amizade e exerceu forte influência sobre nossos modernistas.
Seu poema descreve, com pinceladas imaginativas e às vezes delirantes, uma viagem que, anos antes, ele teria (mas não se sabe o quanto de verdade há nisso) feito por essa mais longa de todas as ferrovias, através da Ásia devastada pela fome, pela guerra russo-japonesa de 1904 etc., indo de Moscou, na Rússia européia, até Porto Arthur, no oceano Pacífico:
""E o apito do vapor/ E o barulho eterno das rodas numa loucura nos trilhos do céu/ Os vidros estão cobertos de geada/Não há natureza/ E atrás as planícies siberianas o céu baixo e as grandes sombras dos Taciturnos que sobem e descem (...) As locomotivas furiosas/ Escondem-se/ Nas aberturas do céu/ E nos buracos,/ As rodas vertiginosas as bocas as vozes/ E os cães malditos que uivam atrás de nós/ Os demônios estão soltos/ Ferragens/ É tudo um acorde falso/ O brum-brum-brum das rodas/ Choque/ Saltos/ Somos uma tempestade sob o crânio de um surdo" (tradução de Liberto Cruz).
Conquistada sua legitimidade poética, o trem não cessaria de reaparecer nessa mesma época, seja no "Poemas de A O Barnabooth", do francês Valéry Larbaud, ou em Fernando Pessoa e, nos anos 30, no "Trem de Ferro" (""Café com pão/ café com pão /café com pão..."), de Manuel Bandeira.
Se é paradoxal o quase século que a arte antiga da poesia levou para absorver o novo meio de transporte, uma outra arte, surgida na virada do século, aclimatizou-o imediatamente: o cinema.
Há muita semelhança entre o cinema e o trem: ambos têm no centro não apenas o movimento, mas um movimento linear que decorre de outro circular, seja o das rodas da locomotiva ou o do rolo de filme na câmara e no projetor.
Velho Oeste
A filmagem de um trem é um desses momentos onde a tecnologia da reprodução e a daquilo que é reproduzido estão em tão evidente harmonia que uma acaba virando reflexo, metáfora natural da outra.
Não há nada de estranho, portanto, no fato de que muitos filmes tematizam, exibem ou ocorrem dentro de trens: eles se prestam no cinema melhor do que navios ou aviões. Mesmo os automóveis, para serem adequadamente cinematográficos, precisam se envolver em múltiplas colisões-monstro.
Os filmes mais ou menos ferroviários se multiplicam, desde algumas das primeiras tomadas realizadas há mais de um século pelos irmãos Lumière até uma ou outra das melhores cenas de uma películas recentes como "Missão Impossível", de Brian DePalma, e um filme simpático como "O Primeiro Assalto a Trem" .
Mesmo obras literárias desimportantes ou importantes, mas nas quais o trem ocupa um lugar secundário, ganham outra dimensão no cinema: "Assassinato no Expresso Oriente", de Agatha Christie, ou "Doutor Jivago", de Boris Pasternak (cujas melhores cenas são as da terrível viagem, pelos horrores da guerra civil e rumo aos Urais, do trem de refugiados e prisioneiros que leva também a família do protagonista).
O trem ocupa, além do mais, o lugar central, de protagonista, num subgênero cinematográfico: a variante do western na qual todos os conflitos são motivados pela chegada iminente ou recente da linha de ferro a algum canto perdido dos EUA. Não faltam exemplos disso, mas "Era Uma Vez na América", de Sérgio Leone, é sem dúvida uma de suas obras-primas.
(NELSON ASCHER)



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