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OLHA O TREM
Espíritos letrados da época não ficaram boquiabertos com a invenção
Poesia legitimou o veículo
com um século de atraso
especial para a Folha
É difícil para o homem atual imaginar o que foi, na primeira metade do século passado, o surgimento dos trens.
Não se trata apenas do caso de
que as pessoas estavam acostumadas a viajar -a pé, a cavalo ou de
carroça, diligência e carruagem-
por estradas pedregosas e poeirentas na primavera e no verão, lamacentas no outono e geladas no inverno, toscas, precárias, que tornavam desconfortável quando não
perigosa a mais breve das jornadas
e inviabilizavam toda e qualquer
previsão segura de duração.
Acontece também que o trem
surgiu num mundo onde virtualmente não havia máquinas. As
poucas máquinas a vapor serviam
à mineração de carvão e se encontravam removidas da visão e talvez
até mesmo da consciência do grosso da humanidade.
Nesse mundo onde, descontados
os moinhos de água e vento, tudo o
que de alguma forma se movia era
acionado pelos músculos dos homens ou dos animais, o trem entrou causando um estranhamento
que nada seria capaz de despertar
no homem de hoje.
Ele era feito (embora não só) de
metal numa civilização construída
de pedra e de madeira; se movia
por conta própria; era mais rápido
do que quase tudo que se conhecia;
avançava em linha reta, num ritmo
regular (e no mundo pré-industrial há pouquíssimas linhas retas e
movimentos regulares), e era capaz de transportar mais gente por
terra do que um navio pelo mar.
É com o trem que a maioria dos
seres humanos adentrou um novo
mundo, o da industrialização e da
modernidade, uma nova concepção de universo.
Por alguma razão, porém, os espíritos letrados já estavam preparados para ele. A arte que a um
tempo domina o século 19 e chegou nele ao seu apogeu, a prosa de
ficção, o romance, particularmente o realista e o naturalista, pareceria, à primeira vista, ser o meio
ideal dentro do qual a surpresa da
nova invenção se patentearia.
É curioso, portanto que, passar
em revista os franceses de Balzac,
Dumas e Stendhal a Flaubert, os
ingleses de Dickens e Trollope a
George Eliot, os russos de Gógol a
Turguêniev, Dostoiévski e Tolstoi,
equivale a se deparar não com a
ausência de ferrovias, mas com a
falta de surpresa diante delas.
Todos eles as mencionam aqui e
ali, mas é como se, no século do
progresso, do aço e do carvão, nada houvesse capaz de deixá-los boquiabertos.
Quando uma ferrovia surge num
romance desse período é quase como se ela já estivesse há séculos no
seu lugar. Ana Karenina, a personagem do romance homônimo de
Tolstoi, mata-se atirando-se sob
um trem, mas isso já se tornara
mais corriqueiro do que se jogar de
um precipício ou do campanário
de uma igreja.
Corcel alado
Só mais tarde, perto do fim do
século, é que o novo veículo assumirá um pouco mais de centralidade em uma ou outra narrativa.
Por exemplo, de um Zola (em "A
Besta Humana"), ou nesse ou naquele conto de Maupassant .
Os poetas do século passado andavam, sem dúvida, de trem, mas
sua poesia continuava cavalgando
algum corcel alado e só no século
20 aparece um poema importante
atravessado do começo ao fim por
uma linha de ferro. Trata-se de
"Prosa do Transiberiano e da Joaninha de França" (Paris, 1913), de
Blaise Cendrars (1887-1961).
O poeta, um suíço cujo verdadeiro nome era Frédéric Louis Sauser,
escrevia em francês, foi um dos
pais da modernidade, perdeu um
braço na Primeira Guerra e, visitando em 1924 o Brasil, fez amizade e exerceu forte influência sobre
nossos modernistas.
Seu poema descreve, com pinceladas imaginativas e às vezes delirantes, uma viagem que, anos antes, ele teria (mas não se sabe o
quanto de verdade há nisso) feito
por essa mais longa de todas as ferrovias, através da Ásia devastada
pela fome, pela guerra russo-japonesa de 1904 etc., indo de Moscou,
na Rússia européia, até Porto Arthur, no oceano Pacífico:
""E o apito do vapor/ E o barulho
eterno das rodas numa loucura
nos trilhos do céu/ Os vidros estão
cobertos de geada/Não há natureza/ E atrás as planícies siberianas o
céu baixo e as grandes sombras
dos Taciturnos que sobem e descem (...) As locomotivas furiosas/
Escondem-se/ Nas aberturas do
céu/ E nos buracos,/ As rodas vertiginosas as bocas as vozes/ E os
cães malditos que uivam atrás de
nós/ Os demônios estão soltos/
Ferragens/ É tudo um acorde falso/ O brum-brum-brum das rodas/ Choque/ Saltos/ Somos uma
tempestade sob o crânio de um
surdo" (tradução de Liberto Cruz).
Conquistada sua legitimidade
poética, o trem não cessaria de reaparecer nessa mesma época, seja
no "Poemas de A O Barnabooth",
do francês Valéry Larbaud, ou em
Fernando Pessoa e, nos anos 30,
no "Trem de Ferro" (""Café com
pão/ café com pão /café com
pão..."), de Manuel Bandeira.
Se é paradoxal o quase século
que a arte antiga da poesia levou
para absorver o novo meio de
transporte, uma outra arte, surgida na virada do século, aclimatizou-o imediatamente: o cinema.
Há muita semelhança entre o cinema e o trem: ambos têm no centro não apenas o movimento, mas
um movimento linear que decorre
de outro circular, seja o das rodas
da locomotiva ou o do rolo de filme na câmara e no projetor.
Velho Oeste
A filmagem de um trem é um
desses momentos onde a tecnologia da reprodução e a daquilo que é
reproduzido estão em tão evidente
harmonia que uma acaba virando
reflexo, metáfora natural da outra.
Não há nada de estranho, portanto, no fato de que muitos filmes
tematizam, exibem ou ocorrem
dentro de trens: eles se prestam no
cinema melhor do que navios ou
aviões. Mesmo os automóveis, para serem adequadamente cinematográficos, precisam se envolver
em múltiplas colisões-monstro.
Os filmes mais ou menos ferroviários se multiplicam, desde algumas das primeiras tomadas realizadas há mais de um século pelos
irmãos Lumière até uma ou outra
das melhores cenas de uma películas recentes como "Missão Impossível", de Brian DePalma, e um filme simpático como "O Primeiro
Assalto a Trem" .
Mesmo obras literárias desimportantes ou importantes, mas nas
quais o trem ocupa um lugar secundário, ganham outra dimensão no cinema: "Assassinato no
Expresso Oriente", de Agatha
Christie, ou "Doutor Jivago", de
Boris Pasternak (cujas melhores
cenas são as da terrível viagem, pelos horrores da guerra civil e rumo
aos Urais, do trem de refugiados e
prisioneiros que leva também a família do protagonista).
O trem ocupa, além do mais, o
lugar central, de protagonista,
num subgênero cinematográfico:
a variante do western na qual todos os conflitos são motivados pela chegada iminente ou recente da
linha de ferro a algum canto perdido dos EUA. Não faltam exemplos
disso, mas "Era Uma Vez na América", de Sérgio Leone, é sem dúvida uma de suas obras-primas.
(NELSON ASCHER)
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