São Paulo, quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIAGEM LITERÁRIA

Às margens do Sena, Shakespeare and Co., que apareceu em "Antes do Pôr-do-Sol", é um local quase mítico

Livraria em Paris atrai turistas das letras

LUÍS SOUZA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Quem assistiu a "Antes do Pôr-do-Sol" pode ter ficado curioso para saber se a livraria parisiense em que se passam as primeiras cenas do filme existe fora das telas. Jesse, o escritor interpretado por Ethan Hawke, conversa com jornalistas em um estabelecimento às margens do rio Sena.
Sim, a Shakespeare and Company existe e é exatamente como mostrada no filme. Se você foi a Paris, por certo já a viu, mas provavelmente não a notou. A livraria fica no número 37 da rue de la Bûcherie, ao lado da catedral de Notre Dame.
Mesmo quem a notou, a não ser que seja fanático por livros ou versado em literatura anglofônica, pode desconhecer a história por trás daquele lugar apertado comandado por um velhinho de aparência excêntrica e sua bela filha e que vende livros majoritariamente em inglês.
A Shakespeare and Co. foi aberta em 1919, em outro endereço, pela americana Sylvia Beach. Era um misto de livraria e biblioteca, com sistema de assinatura e pagamento de taxa por livros emprestados. Também era um ponto de encontro e endereço postal. Ali se organizavam leituras e dava-se aos escritores refúgio dos rigorosos invernos de Paris.
Entre os seus freqüentadores contam-se nomes como o do dramaturgo inglês Bernard Shaw, os dos poetas americano Ezra Pound e francês Paul Valéry, o do romancista francês André Gide e, claro, o do escritor irlandês James Joyce -além da "geração perdida" de escritores americanos, cujos maiores expoentes foram Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald.
Joyce foi, inclusive, o responsável indireto pelo fechamento do negócio de Sylvia Beach. Ela continuou a tocar o estabelecimento até um dia de 1941. Paris vivia sob a ocupação alemã. Um oficial nazista veio à livraria e quis comprar o exemplar do livro de Joyce "Finnegan's Wake" autografado pelo autor e que ficava em exposição na vitrine. Ela se recusou a vendê-lo. O oficial disse que voltaria com soldados e confiscaria todos os livros do local, além de fechá-lo para sempre. Ela então chamou os amigos, tirou todos os livros dali e pintou a fachada. Algumas horas mais tarde, quando o oficial voltou acompanhado, não havia mais sinal da livraria.
Dez anos mais tarde, o também americano George Whitman, o velhinho de aparência excêntrica que ainda hoje pajeia os freqüentadores da Shakespeare and Co., mudou-se para Paris e fundou uma livraria nos moldes da de Sylvia, de quem era admirador. Chamou-a Le Mistral. Ficava ao lado da Notre Dame e serviu de ponto de encontro para toda a "geração vencida" de escritores americanos, como os beatniks que nos anos 50 tomaram de assalto a literatura dos Estados Unidos. Na Le Mistral, por exemplo, o poeta Allan Ginsberg passou algumas temporadas.
Em 1964, Whitman passou a usar o nome Shakespeare and Co.. Sylvia Beach, que era sua amiga e organizava chás literários na Le Mistral, havia lhe dado a autorização antes de morrer, em 1962, já que o espírito do empreendimento era o mesmo: ajudar escritores e divulgar a literatura escrita em inglês. Em sua homenagem, George deu à filha o prenome de Sylvia Beach. Ela é quem hoje cuida do local.
Em "Antes do Pôr-do-Sol", quando Jesse diz a Céline que passou a noite na livraria, trata-se de uma cena que bem poderia acontecer na realidade. Além de leituras às segundas às 20h, a Shakespeare and Co. também tem quartos à disposição de escritores. E qualquer escritor -mesmo que não tenha nada publicado- pode ficar lá, desde que convença George e Sylvia de que tem talento. Se alguém quiser tentar, envie-lhes algo escrito em inglês. Se gostarem, vão determinar o tempo de permanência no quarto. Mas o dia não ficará livre para passeios. Em troca, George e Sylvia pedem uma hora diária de trabalho e a leitura de um livro por dia.
Os turistas podem visitar o local e comprar um livro. Caso esteja chovendo ou venha um cansaço de passeios convencionais, é uma boa opção passar um tempo na biblioteca do andar superior. Não custa nada e pode-se ainda bater um papo com George e Sylvia.

Livros Essenciais
Sugestões de leitura? Aqui vão três, tiradas do site da livraria (www.shakespeareco.org): "Paris é uma Festa", de Hemingway, em que há até um capítulo sobre a livraria; "On the Road", a bíblia dos mochileiros, do beat Jack Kerouac; e, para algo mais moderno, "A Arte de Viajar", do intelectual pop Alain de Botton.
Esses livros ou quaisquer outros comprados na Shakespeare and Co. vêm com um carimbo na segunda página. Algo para guardar orgulhosamente na estante após terminada a leitura.


Texto Anterior: De frente para o mar: Viagem à beira-mar reúne prazer e cansaço
Próximo Texto: Filme serve de passeio pela cidade luz
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.