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JÓIA DA BOÊMIA
Sobriedade de Praga influenciou a "negação" na obra do escritor
Alma kafkaniana mescla-se com a de sua cidade natal
Antonio Arruda/Folha Imagem
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Detalhe de escultura na ponte São Carlos, debruçada sobre o rio Vltava, que corta Praga ao meio |
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PRAGA
Com "O Processo" em mãos, ao
atravessar a ponte São Carlos ou
cruzar as ruas da Cidade Velha,
uma nova relação surge entre o
leitor de Franz Kafka e o escritor
tcheco. Não só isso: o olhar do turista sobre a cidade assume um
ângulo tanto mais profundo
quanto mais o caminhante se dá
conta de que pisa onde pisaram os
pés do oprimido Kafka.
Johannes Urzidil, um dos biógrafos do autor de "A Metamorfose", escreveu: "Kafka era Praga,
e Praga era Kafka. Jamais Praga
seria tão tipicamente perfeita como durante a época em que ele lá
residiu e nunca voltaria a ser a
mesma. Somente nós, seus amigos -uns poucos felizardos-,
sabíamos que detalhes mínimos
dessa cidade foram conhecidos
nos quatro cantos do mundo graças a ele".
Talvez por isso, ler Kafka em sua
terra natal torne-se uma experiência duplamente agônica: ao
ver a soturna Praga, onde, à noite,
as sombras enchem de temor todas as ruas, compreende-se um
pouco mais a total ausência de
alegria e de esperança presente
nas obras do escritor.
Se hoje a cidade exibe orgulhosa
as criações do filho ilustre (e se comercializa sua imagem em broches, ímãs de geladeira, marcadores de livros, copos e vidrinhos de
todos os tipos), durante os mais
de 40 anos de domínio soviético
não faltaram censuras e tentativas
de desvalorizar a obra do escritor.
Filho de judeus (seu pai, o comerciante Hermann Kafka, era figura repressora na vida do escritor e não reconhecia sua real vocação), Kafka nasceu em 1883,
quando a cidade pertencia ao império austro-húngaro.
Educado no ginásio alemão, escolheu esse idioma, e não o tcheco, para escrever suas histórias.
Com exceção do período em que
esteve em Berlim (novembro de
1923 a março de 1924), passou a
vida inteira em Praga. Além da influência marcante de Pascal,
Kierkgaard e Flaubert, entre outros, em sua obra, a crítica costuma dizer que Praga, com seu peso
gótico medieval e seu barroco
sombroso, influenciou muito o
tom de "negação" tão constante
na obra do escritor. Afinal, a impossibilidade é um leitmotiv em
Kafka. Gustave Janouch, amigo e
assessor de Kafka, declarou que o
escritor amava profundamente as
ruas, os jardins, os palácios e as
igrejas de sua terra.
Em uma das cartas escritas a
Milena Jesenská, tradutora e intelectual tcheca por quem o escritor
foi apaixonado, Kafka escreveu:
"E agora? Vá conferir a casa na
rua Ovocná. É quieta. Ninguém
entrando, ninguém saindo. Espero um pouco, primeiro em frente
à casa e depois do outro lado da
rua: nada -casas como essas são
muito mais sábias que as pessoas
que olham para elas".
A observação de Kafka sobre a
cidade rendeu-lhe muitas anotações. Em uma delas, colhida de
um dos seus diários, fica evidente
o olhar inquieto que o escritor
lançava sobre sua apaixonante
-e misteriosa- Praga: "As redondezas de nossa cidade natal,
porém, são também estrangeiras
para nós, mas neste caso as comparações têm valor; uma caminhada de meia-hora pode provar
isso para nós mais e mais vezes;
aqui moram pessoas em parte
dentro da nossa cidade e em parte
no infeliz lado escuro dela".
Talvez seja esse lado escuro -e
escura é a alma dos personagens
kafkianos- o que faz os admiradores da obra de Kafka, quando
em viagem à terra natal do escritor, tornarem-se ainda mais reféns de seu poderoso derrotismo.
E talvez só quem leu Kafka alguma vez na vida admita sentir, tão
intensamente, o temeroso espírito que ronda as esculturas e os
edifícios dessa Praga repleta de
desamparos. Para mais uma vez
citar o escritor de "Um Artista da
Fome": "É uma cidade entre cidades, cujo passado é maior que seu
presente, mas até isso é ainda
marcante".
(ANTONIO ARRUDA)
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