São Paulo, quinta-feira, 03 de março de 2005

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JÓIA DA BOÊMIA

Sobriedade de Praga influenciou a "negação" na obra do escritor

Alma kafkaniana mescla-se com a de sua cidade natal

Antonio Arruda/Folha Imagem
Detalhe de escultura na ponte São Carlos, debruçada sobre o rio Vltava, que corta Praga ao meio


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PRAGA

Com "O Processo" em mãos, ao atravessar a ponte São Carlos ou cruzar as ruas da Cidade Velha, uma nova relação surge entre o leitor de Franz Kafka e o escritor tcheco. Não só isso: o olhar do turista sobre a cidade assume um ângulo tanto mais profundo quanto mais o caminhante se dá conta de que pisa onde pisaram os pés do oprimido Kafka.
Johannes Urzidil, um dos biógrafos do autor de "A Metamorfose", escreveu: "Kafka era Praga, e Praga era Kafka. Jamais Praga seria tão tipicamente perfeita como durante a época em que ele lá residiu e nunca voltaria a ser a mesma. Somente nós, seus amigos -uns poucos felizardos-, sabíamos que detalhes mínimos dessa cidade foram conhecidos nos quatro cantos do mundo graças a ele".
Talvez por isso, ler Kafka em sua terra natal torne-se uma experiência duplamente agônica: ao ver a soturna Praga, onde, à noite, as sombras enchem de temor todas as ruas, compreende-se um pouco mais a total ausência de alegria e de esperança presente nas obras do escritor.
Se hoje a cidade exibe orgulhosa as criações do filho ilustre (e se comercializa sua imagem em broches, ímãs de geladeira, marcadores de livros, copos e vidrinhos de todos os tipos), durante os mais de 40 anos de domínio soviético não faltaram censuras e tentativas de desvalorizar a obra do escritor.
Filho de judeus (seu pai, o comerciante Hermann Kafka, era figura repressora na vida do escritor e não reconhecia sua real vocação), Kafka nasceu em 1883, quando a cidade pertencia ao império austro-húngaro.
Educado no ginásio alemão, escolheu esse idioma, e não o tcheco, para escrever suas histórias. Com exceção do período em que esteve em Berlim (novembro de 1923 a março de 1924), passou a vida inteira em Praga. Além da influência marcante de Pascal, Kierkgaard e Flaubert, entre outros, em sua obra, a crítica costuma dizer que Praga, com seu peso gótico medieval e seu barroco sombroso, influenciou muito o tom de "negação" tão constante na obra do escritor. Afinal, a impossibilidade é um leitmotiv em Kafka. Gustave Janouch, amigo e assessor de Kafka, declarou que o escritor amava profundamente as ruas, os jardins, os palácios e as igrejas de sua terra.
Em uma das cartas escritas a Milena Jesenská, tradutora e intelectual tcheca por quem o escritor foi apaixonado, Kafka escreveu: "E agora? Vá conferir a casa na rua Ovocná. É quieta. Ninguém entrando, ninguém saindo. Espero um pouco, primeiro em frente à casa e depois do outro lado da rua: nada -casas como essas são muito mais sábias que as pessoas que olham para elas".
A observação de Kafka sobre a cidade rendeu-lhe muitas anotações. Em uma delas, colhida de um dos seus diários, fica evidente o olhar inquieto que o escritor lançava sobre sua apaixonante -e misteriosa- Praga: "As redondezas de nossa cidade natal, porém, são também estrangeiras para nós, mas neste caso as comparações têm valor; uma caminhada de meia-hora pode provar isso para nós mais e mais vezes; aqui moram pessoas em parte dentro da nossa cidade e em parte no infeliz lado escuro dela".
Talvez seja esse lado escuro -e escura é a alma dos personagens kafkianos- o que faz os admiradores da obra de Kafka, quando em viagem à terra natal do escritor, tornarem-se ainda mais reféns de seu poderoso derrotismo. E talvez só quem leu Kafka alguma vez na vida admita sentir, tão intensamente, o temeroso espírito que ronda as esculturas e os edifícios dessa Praga repleta de desamparos. Para mais uma vez citar o escritor de "Um Artista da Fome": "É uma cidade entre cidades, cujo passado é maior que seu presente, mas até isso é ainda marcante". (ANTONIO ARRUDA)


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