São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

QUALQUER VIAGEM
O problema, querido, é começar o maldito texto

DAVID DREW ZINGG
em Sampa

"Se você não ficar totalmente deliciado com esta coluna, basta devolvê-la para mim, acompanhada do recibo indicando que você pagou pelo jornal. Eu me comprometo, por meio desta, a lhe devolver o recibo no prazo de cinco dias." David Drew Zingg

Não quero deprimir você com meus problemas pessoais, Joãozinho, mas provavelmente o maior problema com que o escritor se confronta durante toda a sua vida é o seguinte: "Como começar?".
Já que ganho a vida ordenando palavras numa página, dedico uma parte substancial das minhas horas acordado à maneira como outros escritores iniciam suas cartas, artigos, reportagens, ensaios e romances.
O início de qualquer coisa escrita deve cumprir várias funções. Deve prender sua atenção, informá-lo para onde você está indo e despertar sua curiosidade.
Também deve ser o início da história. Soa simples, mas poucos escritores conseguem reunir esses pontos básicos no primeiro parágrafo que estejam escrevendo.
Só a título de curiosidade, volte atrás e dê uma lida em alguns artigos deste jornal. Não leia as reportagens pelas notícias que contêm, mas pelo conteúdo do parágrafo inicial.
O melhor início?

Para ajudá-lo a avaliar inícios escritos, tio Dave vai dar alguns exemplos clássicos com os quais você pode comparar os que quiser avaliar.
"No princípio, Deus criou o céu e a terra."
Eu diria que dificilmente alguém conseguiria escrever uma abertura melhor do que essa. Admito que a pessoa que a escreveu tinha uma história difícil de superar em termos de originalidade e drama -mas, mesmo assim, é uma abertura e tanto.
Tenho uma lista de frases iniciais à qual recorro para me inspirar nos momentos em que não estou conseguindo dar o arranque no meu próprio motor criativo.
Charles Dickens abre seu memorável "Um Conto de Duas Cidades" com: "Foi o melhor e o pior dos tempos".
Quem vai possuir Myra?
Meu velho companheiro de almoços do Ventimiglia, Gore Vidal, inicia seu romance "Myra Breckenridge" dizendo: "Eu sou Myra Breckenridge, que nenhum homem vai possuir".
É uma grande frase para captar o interesse do leitor. E você não ficou com vontade de ler mais para descobrir se alguém chegou a possuir Myra?
Frases iniciais que situam o leitor num local determinado e inconfundível sempre captam minha atenção. Um dos meus escritores brasileiros prediletos é João Simões Lopes Neto, que evoca o mitológico mundo épico dos pampas.
Quando visitei a estância de minha querida amiga Regina Simões Lopes, dormi na cama de ferro fundido do velho João, feita no século 19. Para entrar no clima do Rio Grande do Sul, eu lia seus "Contos Gauchescos".
O primeiro conto, "Trezentas Onças", começa assim: "Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilla, onde devia pousar".
A única coisa que eu sabia com certeza que esse parágrafo inicial garantia era que eu não estava prestes a ingressar no mundo particular de uma gangue de rua do Bronx, em Nova York.
Basta falar em Nova York que minha cabeça faz um salto em "fast-forward" até a grande revista "The New Yorker". (Tina Brown, a primeira editora mulher da revista, foi atraída para trabalhar para o estúdio Miramax, da Disney, mas isso já é outro início).
Talvez o mais rico talento que a "The New Yorker" já apresentou a seus leitores tenha sido o humorista, satirista e cartunista (um termo pavoroso para descrever os sensíveis esboços lineares que fazia do espírito humano) chamado James Thurber.
Thurber escreveu e desenhou uma pequena obra-prima de 86 páginas, um dos livros mais profundamente humorísticos deste século. Em "My Life and Hard Times" (minha vida e tempos difíceis), descreve os saborosos caos e frustrações provocados pela família, infância, juventude, cães vadios e máquinas recalcitrantes de uma tranquila cidade universitária do Meio-Oeste da Gringolândia.
O livro, diz ele, trata "em grande medida de coisas pequenas e, em pequena medida, de coisas grandes". Nele, Thurber reduz nossa falsa crença na essencial sanidade e prudência da raça humana. O livro começa com: "Suponho que o ponto alto de minha vida em Columbus, Ohio, tenha sido a noite em que a cama caiu em cima do meu pai".
Parece que gastei quase toda a coluna desta semana procurando uma boa maneira de começar, e aqui estamos, Joãozinho, quase no final dela.
As coisas escritas muitas vezes são mais difíceis de parar do que foram de começar.
Dá-me grande prazer refletir que T.S. Eliot sofria o mesmo dilema. Eis como concluiu seu famoso poema: "É assim que o mundo acaba/Não com um estrondo... mas com um gemido".


Tradução de Clara Allain.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.