São Paulo, segunda, 6 de outubro de 1997.



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POR DENTRO DO TERREMOTO NA ITÁLIA
Importância de Giotto escapa sem abalos

FEDERICO MENGOZZI
especial para a Folha

Se um incêndio reduzisse a cinzas o painel "Guernica", de Pablo Picasso, o dano seria menor que aquele que acometeu, no dia 26 de setembro, os afrescos de Giotto na basílica superior de São Francisco, em Assis, Itália.
Nesses afrescos, o artista italiano pintou cenas da vida de são Francisco, o religioso que fundou a ordem dos frades mendicantes.
A comparação pode parecer provocadora, mas tem o aval da história da arte.
"Guernica" (1937) é uma releitura tardia das propostas cubistas que Picasso lançou em "Les Demoiselles d'Avignon" (1908), enquanto o ciclo de Giotto (c. 1298-1300) é uma das obras seminais da arte ocidental -aí incluído "Guernica".
Giotto di Bondone (1267?-1337) foi o primeiro artista moderno. Por modernidade, entenda-se o espírito novo que surgiu quando o homem descobriu ser a medida de todas as coisas e, a partir do Renascimento, reinventou o mundo à sua imagem.
Giotto foi o primeiro dos artistas pré-renascentistas.
Antes de Giotto, houve Cenni di Pepo (c. 1240-1302), o Cimabue, seu mestre, que também teve obras danificadas no terremoto que sacudiu a basílica de Assis.
Mudança na estética
Cimabue começou a romper com a estética bizantina e, para o historiador Filippo Villani, trouxe a arte da pintura para a realidade.
A partir de Cimabue, de reminiscências paleocristãs -a arte dos primeiros cristãos- e de seu próprio gênio, Giotto rompeu com o tom majestático dos pintores bizantinos.
Não só. Inseriu os personagens na paisagem, retratou temas da vida cotidiana e deu profundidade aos quadros, ensaiando as artes da perspectiva.
Principalmente, deixou que suas figuras se emocionassem -a ponto de, em alguns momentos, antecipar o expressionismo, escola que só surgiria neste século.
Em sua pintura, como mostram os 28 afrescos sobre são Francisco que pintou na nave da basílica de Assis, Giotto mostra santos, mas fala de homens.
O "Ciclo de São Francisco" foi a primeira encomenda importante do artista, ponto inicial de uma nova linguagem figurativa que ele próprio, em trabalhos como os da capela Scrovegni, em Pádua, sua obra-prima, aperfeiçoaria. O resultado é uma pintura racional, de elementos essenciais, surpreendentemente "clean" e moderna.
São Francisco
Ao alcance de uma platéia inculta, como uma história em quadrinhos, Giotto evocou cenas da vida de são Francisco.
O jovem Francisco que doa um manto a um pobre, que se livra de suas roupas, o religioso em êxtase, pregando aos pássaros... O pintor contou uma história nova, de um jeito novo.
É esse o ciclo que o terremoto que sacudiu a Úmbria, centro da Itália, danificou.
E não só o ciclo de Giotto ou as pinturas de Cimabue, mas a própria igreja, um corpo romântico que guarda um coração gótico.
O interior da basílica superior também foi danificado pelo terremoto e teve trechos do teto atingidos. Agora é aguardar que os restauradores façam milagres.
Giotto foi um gigante que marcou seu tempo e limitou a criação dos pósteros.
Era o que pensava o renascentista Leonardo da Vinci: "Giotto florentino... adiantou-se tanto que ultrapassou não só os mestres de seu tempo, mas todos aqueles de muitos séculos atrás. Depois dele, a arte decaiu, porque todos imitaram suas pinturas..."
Importante é que a base era sólida e sobre ela se ergueu toda a arte ocidental.
Arte que parte de Giotto e chega a Leonardo, mas que também parte de Leonardo e chega a Picasso -e além.



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