São Paulo, segunda-feira, 09 de setembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Os múltiplos joguinhos de Johannesburgo

Quem ainda acha que a arquitetura é neutra deveria dar um passeio em Johannesburgo, mesmo nesses dias agitados da Rio+10. O desenho urbano do apartheid me lembra uma imensa Barra da Tijuca, com a diferença de que só os brancos andam de carro e não há um sistema de transporte coletivo. Os negros se deslocam a pé em longos percursos e congestionam os sinais luminosos oferecendo produtos e lavando pára-brisas para ganhar um trocado.
Empresas de segurança anunciam seus serviços em cartazes de rua e por onde se passa nos lugares mais prósperos abundam vigilantes armados. Muita coisa melhorou, é claro, e outras ainda vão melhorar. Mas a sensação que tenho é a de que a elite negra no poder ainda não resolveu os problemas essenciais de seu povo.
A cobertura da mídia brasileira que nos chega via internet prolonga o espírito da Copa e procura sempre enfocar a questão que lhe parece crucial: o Brasil perdeu, ganhou ou empatou? É um enfoque distorcido, porque não se pode levar a lógica do futebol para um jogo com regras próprias e tempo de duração distinto. Principalmente porque essa não é a questão essencial, por mais que amemos o Brasil. A questão essencial é avaliar a capacidade planetária de buscar acordos consensuais, nem que para isso lance mão de uma ambiguidade tão grande que só produza vagas declarações de boas intenções.
Em termos bem elementares, quem sabe o quanto é difícil harmonizar os interesses numa família ou no próprio bairro pode imaginar a dimensão do esforço planetário de buscar um consenso não apenas sobre a repartição das riquezas, mas também, e sobretudo, da divisão dos riscos e indenizações pelo processo do desenvolvimento científico-industrial que marcou a modernidade.
Quem ganha e quem perde com a definição de metas para a produção de energia de fontes renováveis? Aparentemente o Brasil perde porque não aceitou definir 10% de meta até 2010. A Europa perde porque não aceitou definir em 15% sua meta para 2015. Ganham norte-americanos, japoneses e árabes, estes atrelados à sua grande produção de petróleo. Essa descrição seria perfeita para o futebol, cujo jogo transcorre entre quatro linhas.
A política internacional não se move entre riscas de giz. É uma combinação de múltiplos jogos que se inventam. Em 92, o Brasil estava na retaguarda mundial no diálogo sobre o futuro do planeta. Em 2002, em Johannesburgo, emerge nas posições de vanguarda, liderando a América do Sul e o Caribe. Ponto para o Brasil.
Em 92, o Brasil estava só ou pelo menos mal acompanhado no grupo dos países que destroem sua floresta tropical. Em 2002, num dos grandes momentos paralelos do encontro, lança seu compromisso de ampliar as áreas de proteção da Amazônia para 12% da área total da região.
E, numa solenidade com o Banco Mundial e ONGs, apresenta uma importante iniciativa: a criação do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, com 38,8 mil quilômetros quadrados, o maior do mundo, de todos os tempos, aplaudido de pé no lançamento do encontro mundial de parques nacionais, que acontecerá em Durban, em 2003.
O Brasil continua destruindo suas florestas. Mas lançou um livro dando conta do estado atual do ambiente no país, revelando todos os problemas que não foram resolvidos, todas as suas fragilidades. O Brasil não detém o processo de destruição, mas oferece a transparência como uma nova posição no diálogo. Meio ponto para o Brasil.
A Europa está na vanguarda no processo de mudanças climáticas. Apesar do recuo norte-americano, conseguiu manter o Protocolo de Kyoto de pé e obteve, finalmente, a adesão da Rússia. Ponto para a Europa.
Vamos entrar em outro jogo, que se articula com esse, aumentando sua complexidade. Ao se lançar no processo de modernização ecológica, a Europa aprofunda seu capitalismo, desenvolve uma indústria mais sofisticada e ganha vantagens sobre os norte-americanos, que se encastelam na defesa de indústrias poluidoras, com o velho argumento de que representam milhões de empregos.
No centro das conferências, defronte ao restaurante Butcher's Grill, a BMW comprou um imenso estande para mostrar seu motor a hidrogênio e o luxuoso carro que vai mover. Toda a tecnologia do hidrogênio é exibida numa exposição com suas partes, seus desenhos e seus textos científicos. Jogo pesado, que mostra para onde estão caminhando velozmente os europeus e como vêem nesse confronto uma maneira de se opor e, progressivamente, superar a economia norte-americana.
Tudo isso está implícito em negociações que se arrastam até de madrugada com os principais parceiros, usando a tática de vencer pelo cansaço. Quando todos se dão conta, os chefes de Estado já estão chegando e é hora de fechar um texto que já seria vago em outras circunstâncias, mas que nessas é um parto doloroso.
Abraçados no petróleo, americanos e árabes impedem que o mundo adote metas para energia limpa. Conseguem retardar um pouquinho a admissão planetária de que o caminho é o apontado pelos outros. A Dinamarca, que já produz 15% de sua energia usando a força dos ventos, seria então a grande perdedora?
Com tantos jogos entrelaçando-se na sua frente, a mídia se fixou no placar. Também perdeu de vista a grande novidade de 92 para cá: a emergência da escassez de água como um grande desafio planetário. E ainda a estupenda exposição no Water Dome, onde algumas dos principais experiências em tratar a escassez são exibidas com os anúncios das conferências internacionais no Marrocos e no Japão, cenários para novas discussões internacionais.
Como não há espaço para a água neste texto, voltarei a ele a partir das impressões do Water Dome. Só me resta o poema de Drummond ao subir as escadas do avião que me leva de volta ao Brasil: "Ganhei, perdi meu dia? E baixa a coisa fria, também chamada noite".


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