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FERNANDO GABEIRA
Os múltiplos joguinhos de Johannesburgo
Quem ainda acha que a
arquitetura é neutra deveria dar um passeio em Johannesburgo, mesmo nesses dias agitados da Rio+10. O desenho urbano
do apartheid me lembra uma
imensa Barra da Tijuca, com a
diferença de que só os brancos andam de carro e não há um sistema de transporte coletivo. Os negros se deslocam a pé em longos
percursos e congestionam os sinais luminosos oferecendo produtos e lavando pára-brisas para
ganhar um trocado.
Empresas de segurança anunciam seus serviços em cartazes de
rua e por onde se passa nos lugares mais prósperos abundam vigilantes armados. Muita coisa melhorou, é claro, e outras ainda vão
melhorar. Mas a sensação que tenho é a de que a elite negra no poder ainda não resolveu os problemas essenciais de seu povo.
A cobertura da mídia brasileira
que nos chega via internet prolonga o espírito da Copa e procura sempre enfocar a questão que
lhe parece crucial: o Brasil perdeu, ganhou ou empatou? É um
enfoque distorcido, porque não se
pode levar a lógica do futebol para um jogo com regras próprias e
tempo de duração distinto. Principalmente porque essa não é a
questão essencial, por mais que
amemos o Brasil. A questão essencial é avaliar a capacidade
planetária de buscar acordos consensuais, nem que para isso lance
mão de uma ambiguidade tão
grande que só produza vagas declarações de boas intenções.
Em termos bem elementares,
quem sabe o quanto é difícil harmonizar os interesses numa família ou no próprio bairro pode
imaginar a dimensão do esforço
planetário de buscar um consenso
não apenas sobre a repartição das
riquezas, mas também, e sobretudo, da divisão dos riscos e indenizações pelo processo do desenvolvimento científico-industrial que
marcou a modernidade.
Quem ganha e quem perde com
a definição de metas para a produção de energia de fontes renováveis? Aparentemente o Brasil
perde porque não aceitou definir
10% de meta até 2010. A Europa
perde porque não aceitou definir
em 15% sua meta para 2015. Ganham norte-americanos, japoneses e árabes, estes atrelados à sua
grande produção de petróleo. Essa descrição seria perfeita para o
futebol, cujo jogo transcorre entre
quatro linhas.
A política internacional não se
move entre riscas de giz. É uma
combinação de múltiplos jogos
que se inventam. Em 92, o Brasil
estava na retaguarda mundial no
diálogo sobre o futuro do planeta.
Em 2002, em Johannesburgo,
emerge nas posições de vanguarda, liderando a América do Sul e
o Caribe. Ponto para o Brasil.
Em 92, o Brasil estava só ou pelo
menos mal acompanhado no grupo dos países que destroem sua
floresta tropical. Em 2002, num
dos grandes momentos paralelos
do encontro, lança seu compromisso de ampliar as áreas de proteção da Amazônia para 12% da
área total da região.
E, numa solenidade com o Banco Mundial e ONGs, apresenta
uma importante iniciativa: a
criação do Parque Nacional das
Montanhas do Tumucumaque,
com 38,8 mil quilômetros quadrados, o maior do mundo, de todos os tempos, aplaudido de pé no
lançamento do encontro mundial
de parques nacionais, que acontecerá em Durban, em 2003.
O Brasil continua destruindo
suas florestas. Mas lançou um livro dando conta do estado atual
do ambiente no país, revelando
todos os problemas que não foram resolvidos, todas as suas fragilidades. O Brasil não detém o
processo de destruição, mas oferece a transparência como uma nova posição no diálogo. Meio ponto para o Brasil.
A Europa está na vanguarda no
processo de mudanças climáticas.
Apesar do recuo norte-americano, conseguiu manter o Protocolo
de Kyoto de pé e obteve, finalmente, a adesão da Rússia. Ponto
para a Europa.
Vamos entrar em outro jogo,
que se articula com esse, aumentando sua complexidade. Ao se
lançar no processo de modernização ecológica, a Europa aprofunda seu capitalismo, desenvolve
uma indústria mais sofisticada e
ganha vantagens sobre os norte-americanos, que se encastelam na
defesa de indústrias poluidoras,
com o velho argumento de que representam milhões de empregos.
No centro das conferências, defronte ao restaurante Butcher's
Grill, a BMW comprou um imenso estande para mostrar seu motor a hidrogênio e o luxuoso carro
que vai mover. Toda a tecnologia
do hidrogênio é exibida numa exposição com suas partes, seus desenhos e seus textos científicos. Jogo pesado, que mostra para onde
estão caminhando velozmente os
europeus e como vêem nesse confronto uma maneira de se opor e,
progressivamente, superar a economia norte-americana.
Tudo isso está implícito em negociações que se arrastam até de
madrugada com os principais
parceiros, usando a tática de vencer pelo cansaço. Quando todos se
dão conta, os chefes de Estado já
estão chegando e é hora de fechar
um texto que já seria vago em outras circunstâncias, mas que nessas é um parto doloroso.
Abraçados no petróleo, americanos e árabes impedem que o
mundo adote metas para energia
limpa. Conseguem retardar um
pouquinho a admissão planetária de que o caminho é o apontado pelos outros. A Dinamarca,
que já produz 15% de sua energia
usando a força dos ventos, seria
então a grande perdedora?
Com tantos jogos entrelaçando-se na sua frente, a mídia se fixou
no placar. Também perdeu de
vista a grande novidade de 92 para cá: a emergência da escassez de
água como um grande desafio
planetário. E ainda a estupenda
exposição no Water Dome, onde
algumas dos principais experiências em tratar a escassez são exibidas com os anúncios das conferências internacionais no Marrocos e no Japão, cenários para novas discussões internacionais.
Como não há espaço para a
água neste texto, voltarei a ele a
partir das impressões do Water
Dome. Só me resta o poema de
Drummond ao subir as escadas
do avião que me leva de volta ao
Brasil: "Ganhei, perdi meu dia? E
baixa a coisa fria, também chamada noite".
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