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MOCHILÃO À CUBANA
Para Dirceu, desbloqueio é imprescindível
Ex-ministro diz que país precisa manter independência, liberar o mercado agrícola e o trabalho autônomo
PRISCILA PASTRE-ROSSI
DA REPORTAGEM LOCAL
Colega de Fidel Castro, 81, o
ex-deputado e ex-ministro da
Casa Civil (cassado em 2005,
após suspeitas de envolvimento no esquema do mensalão)
José Dirceu, 62, não passa muito tempo sem ir a Cuba, para
onde foi depois de ter sido preso pela ditadura militar.
Boa parte do período do exílio na ilha-de 1969 a 1979- ele
passou no Brasil, vivendo clandestinamente. Mas os anos vividos em Cuba foram o bastante para conhecer pessoalmente
o ditador Fidel Castro, estudar
e trabalhar. Dirceu passou meses em treinamento militar, foi
funcionário de gráfica e projetista de cinema em Havana.
Os detalhes da sua história
em Cuba, ele guarda para revelar em um livro, ainda só nos
planos. Em entrevista à Folha,
avalia a transição do poder para Raúl Castro e indica lugares
emblemáticos na ilha.
FOLHA - Do tempo que o senhor
morou em Havana, poderia citar um
lugar marcante e que não deve ficar
de fora de um roteiro na cidade?
JOSÉ DIRCEU - Sem dúvida, o hotel Nacional [www.hotelnacional-cuba.com; fundado em
1930 e, há dez anos, declarado
monumento nacional]. É um
dos prédios mais bonitos de
Havana e fica bem no centro.
Vale fazer uma refeição lá. Eu
ia pouco porque a minha vida
não permitia, eu não tinha
tempo. Outra coisa que não pode faltar é passear no Malecón,
pelas ruas de Havana Velha,
que têm muitos lugares intocados. Pelo menos para quem
gosta da história de Havana...
Ainda mais agora, que ela está
todinha restaurada pela Habaguanex [estatal ligada ao patrimônio histórico da cidade, que
vem transformando prédios
antigos em hotéis, restaurantes
e lojas]. Hoje, Havana tem quase 20 hotéis e vários resorts.
Mudou completamente.
FOLHA - As agências de turismo colocam cada vez mais Cuba em destaque. Seria uma "corrida a Cuba" de
quem acha que o socialismo pode
acabar na ilha? Um clima de "preciso
ver antes que acabe?"
DIRCEU - Acho que não. O que
existe é um interesse natural
tanto de quem apóia quanto de
quem não apóia o sistema implantado no país. Mas acho que
é mais um interesse histórico.
O lugar está intocado há 50
anos. É uma coisa maravilhosa.
Você tem lá cidades históricas,
como Santiago de Cuba -que
acho tão maravilhosa quanto
Salvador-, praias como Varadero. E não é uma viagem cara.
Há hotéis em várias categorias
de preço. Há turismo de pesca,
passeio de barco, ecológico... E
é bem organizado. Tem hotel
de quatro, cinco estrelas, como
em qualquer país do mundo.
FOLHA - O senhor fez uma relação
entre Santiago de Cuba e Salvador.
Há muito em comum nas culturas
brasileira e cubana?
DIRCEU - Tenho um amigo baiano que brinca que Santiago de
Cuba faz parte da Bahia! Nós
temos a mesma origem afro. Os
cubanos foram colonizados pelos espanhóis. Nós, pelos portugueses. Mas acredito que essa identidade étnica, racial, é
muito forte. A comida cubana é
uma mistura da mineira com a
baiana. Ué... É arroz com feijão,
é carne de porco, é mandioca...
É a nossa comida. É o frango
que nós comemos, a cabidela. E
tem a macumba, né? O candomblé. A "santeria", como eles
chamam. Se um dia você vir fotos dos guerrilheiros, pode observar: todos traziam amuletos.
FOLHA - Há liberdade religiosa?
DIRCEU - Total. Cuba soube preservar sua identidade cultural.
FOLHA - Qual é a sua bebida preferida em Cuba? Mojito ou daiquiri?
DIRCEU - (Rindo) Pouca gente
sabe disso, mas até os 35 anos
eu quase não bebia nada. Mas a
bebida que eu aprecio até hoje é
o rum. Falando nisso, os hotéis
de Cuba preparam muita caipirinha. Só não pode falar "pinga"
porque lá tem outro significado
(risos) [é sinônimo de pênis].
Mas pode pedir pra preparar
com cachaça, aguardente, que
eles sabem o que é. Tem uma
cachaça razoável que é produzida lá. Na minha última visita a
Cuba, como o bar estava sem
"erva buena" [hortelã, para o
mojito], experimentei a caipirinha. Essa nossa identidade cultural é muito forte. Eles têm
uma paixão pelo Brasil.
FOLHA - Quando vai para Havana,
onde gosta de se hospedar?
DIRCEU - O ideal é mesmo o hotel Nacional, mas também indico o Meliá Havana [www.solmelia.com]. Agora, tem uns
hotéis de oito, dez quartos, em
uns prédios antigos, com pátio
espanhol, bem lá dentro de Havana Velha, que valem a pena.
FOLHA - Um bom passeio deve ter
quantos dias, no mínimo?
DIRCEU - Três dias em Havana e
três em Varadero. Ah, vale conhecer Santiago também.
FOLHA - Em uma entrevista à
"Playboy" em 1985, Fidel já dizia
que seu sucessor seria o irmão Raúl.
A transição ocorreu no tempo certo?
DIRCEU - Veja bem, o Fidel já tinha passado o governo para o
Raúl desde que ele caiu [referindo-se à queda que Fidel sofreu em 2004, quando quebrou
um dos ossos do joelho esquerdo e feriu um braço]. Agora ele
passou pela segunda vez.
FOLHA - Qual será o maior desafio?
DIRCEU - A idéia dos Estados
Unidos de dominar Cuba é real,
é um fato, entendeu? Os EUA
fazem represália a países e empresas que façam negócios com
Cuba e impedem investimentos em energia, gás e petróleo.
Então, a primeira coisa que importa para Cuba é manter a independência. Depois vêm as reformas. É preciso liberar o mercado agrícola, melhorar os salários, permitir a prestação de
serviços por particulares e o
trabalho autônomo. Isso tudo
vai ter reflexo no turismo e na
prestação de serviços. E tem
outra coisa... Esse congresso
GLS foi muito importante [referindo-se a uma espécie de
"parada gay" promovida em
Havana no último mês de
maio]. Imagina o avanço que isso representa para uma sociedade que era tão machista.
FOLHA - Abrir mais o país ao continente ameaça o modelo socialista?
DIRCEU - Se vai dar para manter
o regime ou não, não se pode dizer. A minha avaliação é que
quanto mais eles mudarem,
mais eles vão poder manter as
coisas boas que eles conquistaram: uma sociedade igualitária,
segurança social com baixíssima violência e baixíssima miséria. Tudo isso apesar da escassez. A sociedade tem dificuldades de acesso a bens e insumos.
FOLHA - Em seu blog, o senhor ressalta esses pontos e outros que considera conquistas do governo cubano. Em resposta, a maioria dos seus
leitores postam comentários anticastristas. A que o senhor acha que
se deve essa antipatia?
DIRCEU - Muitas pessoas desconhecem as conquistas da revolução. É evidente que a nossa
experiência com a democracia
resiste ao fato de Cuba ter um
partido único e a falta de eleições. Mas não se pode esquecer
das conquistas sociais. Não estou dizendo que Cuba não seja
um país deficitário. Tem problemas, não ignoro isso.
FOLHA - E qual é o maior problema?
DIRCEU - A estatização dos serviços, na década de 60, foi um
grande erro. Devia ter trabalho
autônomo em Cuba. As opções
eram poucas no cenário da
Guerra Fria, mas esse problema deveria ter sido revisto.
FOLHA - Qual é o papel do Brasil
nessa fase de transição de Cuba?
DIRCEU - Acho que o Brasil tem
um papel muito importante,
com a Argentina e a Venezuela,
para investir, aumentar o comércio, negociar. E os EUA têm
de suspender o bloqueio. Porque não há nenhuma razão para ele existir. Tem de voltar a
migração legal e liberar as remessas de recursos. O Partido
Democrata tem isso como política oficial. Todo mundo está
investindo em Cuba. Só os
americanos que não. Você sabe
que Cuba já compra US$ 500
mil dos EUA por ano. É uma legislação especial, uma linha de
crédito, mas também é para dar
vazão ao excesso de produção.
A maioria não quer mais o embargo, nem a maior parte dos
cubanos nos EUA. Eles querem
separar as questões políticas da
questão das relações.
FOLHA - O senhor esteve com Fidel
antes de ele ficar doente. Como é
sua relação com ele?
DIRCEU - Minha relação com Fidel começou por meio do Guevara [referindo-se ao intelectual e fundador do Instituto de
Cinema Cubano Alfredo Guevara], que não tem nada a ver
com o Che. Eu e Guevara nos
conhecemos em 68, no Brasil, e
ele me esperou em Cuba. Também já encontrei Fidel como
integrante do governo e como
dirigente do PT. Sou um devedor, jamais vou deixar de ser
solidário e de apoiar Cuba.
FOLHA - Poderia nos contar seu momento mais marcante naquele país?
DIRCEU - Um dos momentos
mais importantes foi a visita do
presidente Lula, que acompanhei como ministro-chefe da
Casa Civil [lembrando da ida do
presidente à ilha em 2003,
quando a equipe foi recebida
por Fidel no aeroporto]. Saiu
na imprensa que eu até chorei.
Me emocionei pela recordação
e memória de meus companheiros que morreram, por eles
não estarem lá para ver.
FOLHA - Atualmente o senhor vai lá
a passeio ou para algum trabalho?
DIRCEU - Não fico muito tempo
sem ir a Cuba. Mas agora vou
mais para passear. Estive lá recentemente com o Fernando
Morais, para pesquisar. Pensamos em fazer uma biografia.
Mas ainda não sabemos no que
vai resultar ao certo.
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