São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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REFÚGIO EUCLIDIANO

Maior obra de Euclides da Cunha faz cem anos em dezembro e foi escrita em São José do Rio Pardo

Berço de "Os Sertões" mantém calmaria

Mirella Domenich/Folha Imagem
Ponte metálica projetada por Euclides e reconstruída de 1898 a 1901, em São João do Rio Pardo


MIRELLA DOMENICH
ENVIADA A SÃO JOSÉ DO RIO PARDO

O jornalista e engenheiro Euclides da Cunha (1866-1909) escreveu a maior parte do livro "Os Sertões", cuja primeira impressão completa cem anos no dia 2 de dezembro, em um barraco de zinco construído por ele mesmo à beira do rio Pardo, em São José do Rio Pardo, a 260 km de São Paulo. O livro narra a sangrenta Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, que Euclides acompanhou como repórter do jornal "O Estado de S.Paulo" em 1897.
O escritor viveu três anos em São José do Rio Pardo, entre 1898 e 1901, durante a reconstrução de uma ponte metálica sobre o rio Pardo projetada por ele a convite da cidade, depois que a primeira ponte local desabou com 50 dias de uso. A ponte foi importada da Alemanha e sua função na época era facilitar o transporte de café da região (à margem direita do rio) para a estação ferroviária, de onde era levado para o porto de Santos e depois exportado.
Enquanto comandava a obra arquitetônica, concebia sua obra literária em tiras de papel, por meio de garranchos, que foram redigidos por um calígrafo da cidade, afirma o sociólogo Rodolpho José Del Guerra.
Segundo Guerra, foi em São José do Rio Pardo que Euclides encontrou paz para escrever o livro. Quem visita a cidade hoje pode ter uma idéia da calmaria a que o estudioso se refere. Mais de um século depois de o autor ter deixado o local, o berço de "Os Sertões" continua pacato e acolhedor.
Lá estão a Casa de Cultura Euclides da Cunha, onde o escritor morou, a cabana de zinco, onde ele escreveu sua obra, e a ponte metálica, cartão-postal da cidade, que ainda hoje é um importante meio de acesso de um lado para o outro do rio. Os três locais são tombados pelo patrimônio histórico e cultural.
São José do Rio Pardo é também berço do movimento euclidiano, que reúne, há 90 anos, os interessados em estudar a vida e a obra do escritor. O motivo é simples: apesar de Euclides ter nascido no arraial de Santa Rita do Rio Negro, atual Euclidelândia, em Cantagalo (RJ), e de ter vivido no Rio, em Salvador e em São Paulo, além de ter feito expedições pela Amazônia, foi em solo rio-pardense que nasceu "Os Sertões".
De 9 a 15 de agosto, todos os anos, os euclidianos se reúnem na cidade para uma série de debates (veja na pág. F8). Os encontros, batizados de Semana Euclidiana, acontecem há mais de 60 anos.
Para quem preferir fugir da efervescência desses dias e quiser se aprofundar na obra do escritor em outra data, a cidade é a que reúne um dos maiores acervos sobre o assunto, na Casa de Cultura Euclides da Cunha, conhecida como Casa Euclidiana, onde funcionam um museu e um centro de exposições itinerantes.
Apesar de pouco visitada pelos próprios rio-pardenses, qualquer morador da cidade sabe o que é aquele sobrado cor-de-rosa erguido na rua Marechal Floriano, com um jardim de cactos na entrada, reproduzindo a vegetação do sertão nordestino.
O diretor da Casa Euclidiana, Álvaro Ribeiro de Oliveira Netto, 63, o Alvinho, preocupa-se em difundi-la entre os moradores locais. Os esforços apresentaram resultados na Semana Euclidiana deste ano.
Em 11 de agosto, um domingo, dia em que a casa costuma estar fechada, a presença de moradores e visitantes aumentou bastante, e Netto não conseguia fechá-la, porque as pessoas estavam entretidas com as novidades do museu. A Casa Euclidiana (r. Marechal Floriano, 105, tel. 0/xx/ 19/3681-6424) funciona de segunda a sábado, das 8h às 17h.
Cerca de duas horas antes havia ocorrido a inauguração do Centro de Estudos e Pesquisas Euclidianos Dr. Oswaldo Galotti, que reúne mais de 1.500 livros sobre Euclides da Cunha e "Os Sertões", além de recortes de jornais, manuscritos, cartas e cartões.
Estaõ ainda no local o original do livro de poemas "Ondas", escrito por Euclides quando ele ainda era adolescente, ainda não publicado, e edições raras de suas outras obras: "Contrastes e Confrontos", "Peru versus Bolívia", "À Margem da História", "Caderneta de Campo", "Castro Alves e seu Tempo" e "Canudos - Diário de uma Expedição".
O museu tem um acervo com todas as edições de "Os Sertões" publicadas até hoje, nas 13 línguas para as quais ele foi traduzido, roupas de soldados e de sertanejos que lutaram em Canudos, as armas usadas na guerra, o diploma de engenheiro de Euclides e até uma bandeira do Brasil que ele mantinha na cabana de zinco.
O diretor da Casa Euclidiana está diariamente no museu e adora uma boa conversa. Melhor ainda se for sobre "Os Sertões".
A cabana de zinco e o mausoléu com os restos mortais do escritor estão no Recanto Euclidiano, próximo à avenida Euclides da Cunha, às margens do rio Pardo. Há também um extenso jardim de cactos, com bancos.
No final do dia, as árvores fazem sombra no local e o sol se põe atrás da ponte metálica, que pode ser vista a partir do jardim, formando uma sobreposição de imagens: o rio, a ponte, a estátua do Cristo Redentor de São José do Rio Pardo e os raios de sol.
Cuidado apenas para não se decepcionar com a cabana de zinco: ela está em uma redoma de vidro. A curiosidade humana grita para cheirar, tocar, entrar na cabana. Nada disso é possível. Mas vale a pena pelo menos ver como era. E imaginar que não foi só Euclides que teve o privilégio de ver um sol como aquele se pôr.


Mirella Domenich viajou a convite da organização da Semana Euclidiana.


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