São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

De Bangu a Bagdá, um 11 de setembro

"Onde você estava no 11 de setembro?" Essa pergunta tediosa, que os jornalistas fazem por falta de temas melhores, merecia ser adaptada ao 11 de setembro de 2002, quarta-feira.
Por incrível que pareça, meu 11 de setembro foi quase tão tenso quanto o do ano passado.
Comecei o dia com um debate com o ex-chefe de polícia Álvaro Lins e o bravo delegado Zachone na Universidade Rural, em Seropédica, a uns 60 km do Rio de Janeiro. O tema era "Drogas e violência urbana".
Lins é candidato a deputado e cumpre essa agenda de debates que nos faz percorrer muitas universidades durante a campanha.
Ele chegou tarde e pediu desculpas. Havia uma rebelião em Bangu 1, e a polícia cercara o presídio. Mortos, reféns, os detalhes iam surgindo na medida em que o debate transcorria.
Na platéia, um agente penitenciário lembrou que a diretora de Bangu 1 foi assassinada no ano passado e disse que todos que trabalham com direitos humanos eram culpados por isso.
Comércio e escolas fechados, motos percorrendo as ruas de nove bairros, comunicando as novas: luto para os mortos. Mães em pânico prendem os filhos em casa, os boatos correm as ruas mais rápido que as motos. O Comando Vermelho liquidou a ADA (Amigos dos Amigos) e lançou o grito funk: "Está tudo dominado".
Eu vinha pensando também em Bagdá, numa possível invasão americana, no aumento do preço do petróleo, na crise aguda no Oriente Médio, no FMI apertando o nosso cinto. O ano de 2003 na Rio-São Paulo parecia um caminho estreito e cinzento. A guerra no horizonte, um tipo de guerra na retaguarda.
Os debates sobre segurança no Rio não são um exercício de retórica, apenas. Os espectadores cobravam saídas, mostravam-se ansiosos, escandalizados com o diagnóstico que íamos produzindo, apesar de nossas divergências.
Antes, o jogo do bicho mantinha os policiais com um salário razoável. Mas agora o jogo decidiu enviar sua contribuição para as altas cúpulas. Os policiais na rua ficaram à mercê do tráfico de drogas para complementar sua modesta renda. Em síntese: esqueçam essa história da Globo sobre o poder paralelo. Paralelas se encontram no infinito. Um poder entrelaçado, usando parte do aparato do Estado, descreveria melhor a situação.
Lins acha possível atacar o problema a curto prazo, desmantelando as quadrilhas. Propõe o modelo italiano da Operação Mãos Limpas, com endurecimento legal a partir de um acordo com a própria sociedade. A médio e longo prazos, acredita no combate à lavagem do dinheiro, como forma de desenrolar o novelo.
Concordei que era preciso atingir o lado econômico da atividade e que a legalização poderia ser a forma decisiva nesse campo. Os criminosos se voltariam para outras atividades? Possivelmente, mas sem os lucros de 500% que o tráfico de drogas lhes propicia.
Em campanha ninguém pára. Tive de entrar num táxi para Jacarepaguá. Ouvi o motorista falando com a mulher sobre os filhos ficarem em casa e o vi descrever para eles as ruas que estavam livres, os pontos de congestionamento, as ruas perigosas.
A julgar pela conversa de rua, o povo quer energia, repressão, sangue. O pavio está ali, esperando só os demagogos riscarem o fósforo. Ninguém se pergunta sobre a nova constituição do tráfico no Rio, se não ficou mais vulnerável com um comando unificado, se o Comando Vermelho não abriu um flanco do tipo que é descrito em luta marcial no Oriente: o agressor se desequilibra e se expõe.
Passei o 11 de setembro com olhos e ouvidos ligados em Bush, temendo o início de uma guerra contra o Iraque. Ele parece ter jogado para adiante nossos temores planetários. E nos deixou sós com nossa guerra urbana.
Não esqueço o rosto do agente penitenciário. No final do debate, veio falar dos problemas de sua categoria. Ganham pouco, vivem presos com os presos e, quando saem, são discriminados mesmo pela polícia, que os considera quase marginais.
Numa semana de debates e soluções mirabolantes para a violência urbana, será que alguém vai procurar os agentes penitenciários? Por que não fazer um programa de coisas simples, básicas, para ir chegando aos poucos ao mais complexo?
Vejo um figurão dizer que o sistema penitenciário brasileiro fracassou. Tudo bem, fracassou. Mas o sistema é algo autônomo, regido por leis próprias, que a sociedade descarta do jogo como um participante do "Big Brother", ou ele é um pouco o retrato de nosso próprio fracasso?
Bem que Thoreau dizia, depois de passar por uma prisão, que todo homem de bem deveria visitar uma cadeia para ver como ela funciona. Isso faria um bem enorme ao país.


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