|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FORTALEZA NO REPENTE
Oriundo da Europa medieval, o estilo fincou raízes no Ceará e possui até banca especializada
Notícias chegam à banca em forma de poesia
DA REPORTAGEM LOCAL
No centro de Fortaleza, no largo
dos Correios, uma banca chama a
atenção. Lá não são vendidos jornais, revistas nem gibis. Notícias,
análises políticas e histórias pitorescas são apresentadas em outro
formato: poesia. Trata-se da Banca Nacional do Cordel, inaugurada há dois anos e especializada
nesse gênero literário.
Para quem não conhece, uma
breve apresentação. Visualmente,
o cordel é um folheto colorido,
que cabe na mão e, geralmente,
traz uma xilogravura na capa.
Estruturalmente, trata-se de
uma narrativa poética apresentada em estrofes de seis versos (sextilhas), embora também possa
aparecer em setilhas ou décimas.
Socialmente, o cordel é muito
mais que isso. É o caminho pelo
qual poetas populares -muitos
dos quais sem instrução formal,
como Patativa do Assaré (leia texto abaixo)- conseguem interpretar o mundo, questioná-lo e
transmitir suas tradições. "Muita
gente tem trabalhado o cordel como uma forma, um molde, no
qual você coloca qualquer coisa.
Não é isso. O cordel passa por
uma visão de mundo", diz Gilmar
de Carvalho, autor de "Madeira
Matriz - Cultura e Memória".
No livro, Carvalho analisa a influência do cordel e da xilogravura no imaginário popular a partir
da construção e da cristalização,
nesses folhetos, do ícone religioso
padre Cícero Romão Batista.
O "padim Ciço" atrai todos os
anos milhares de romeiros a Juazeiro do Norte, na região do Cariri, no sul do Ceará. Seus milagres,
suas profecias, sua vida e morte
(em 1934) já renderam, até hoje,
no mínimo 300 títulos de cordel,
muitos dos quais narram seu encontro com outro personagem
fortíssimo na literatura popular: o
cangaceiro Lampião.
Mistura de registro histórico
com elementos míticos, a literatura de cordel era um importante
meio de comunicação na parte
ibérica da Europa, na Idade Média. Através dela, eram narradas
aventuras de cavalaria, temas religiosos e histórias de amor.
Trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, a literatura
de cordel foi reformulada e incorporada à cultura do Nordeste brasileiro, especialmente na Paraíba,
em Pernambuco e no Ceará.
Este último chegou a abrigar o
maior pólo de edição popular do
Brasil, a tipografia São Francisco,
em Juazeiro do Norte, na década
de 50. Na época, cordéis como "O
Romance do Pavão Misterioso",
de José Camelo, eram considerados verdadeiros best-sellers:
"Eu vou contar uma história/ de
um pavão misterioso/ que levantou vôo na Grécia/ com um rapaz
corajoso/ raptando uma condessa/ filha de um conde orgulhoso."
Inspirado na cultura popular, o
músico cearense Ednardo levou
as aventuras do casal apaixonado
do cordel para a partitura. "Pavão
mysteriozo/ pássaro formoso/ um
conde raivoso/ não tarda a chegar/ não temas minha donzela/
nossa sorte nessa guerra/ eles são
muitos/ mas não podem voar."
Não só nesse caso cordel e música se aproximam. A rima do cordel se assemelha muito à do repente. Porém, enquanto o cordel
é uma narrativa escrita, o repente
é um duelo cantado. Não é raro,
na praia do Futuro ou na Beira-Mar, ser abordado por uma dupla
de repentistas disposta a duelar.
Vale qualquer tema: política, futebol, religião... Tudo em rimas.
(AMARÍLIS LAGE)
Texto Anterior: Fortaleza à mesa: Comer caranguejo dispensa cerimônia Próximo Texto: "Cante lá... Índice
|