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São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 2003

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FORTALEZA NO REPENTE

Oriundo da Europa medieval, o estilo fincou raízes no Ceará e possui até banca especializada

Notícias chegam à banca em forma de poesia

DA REPORTAGEM LOCAL

No centro de Fortaleza, no largo dos Correios, uma banca chama a atenção. Lá não são vendidos jornais, revistas nem gibis. Notícias, análises políticas e histórias pitorescas são apresentadas em outro formato: poesia. Trata-se da Banca Nacional do Cordel, inaugurada há dois anos e especializada nesse gênero literário.
Para quem não conhece, uma breve apresentação. Visualmente, o cordel é um folheto colorido, que cabe na mão e, geralmente, traz uma xilogravura na capa.
Estruturalmente, trata-se de uma narrativa poética apresentada em estrofes de seis versos (sextilhas), embora também possa aparecer em setilhas ou décimas.
Socialmente, o cordel é muito mais que isso. É o caminho pelo qual poetas populares -muitos dos quais sem instrução formal, como Patativa do Assaré (leia texto abaixo)- conseguem interpretar o mundo, questioná-lo e transmitir suas tradições. "Muita gente tem trabalhado o cordel como uma forma, um molde, no qual você coloca qualquer coisa. Não é isso. O cordel passa por uma visão de mundo", diz Gilmar de Carvalho, autor de "Madeira Matriz - Cultura e Memória".
No livro, Carvalho analisa a influência do cordel e da xilogravura no imaginário popular a partir da construção e da cristalização, nesses folhetos, do ícone religioso padre Cícero Romão Batista.
O "padim Ciço" atrai todos os anos milhares de romeiros a Juazeiro do Norte, na região do Cariri, no sul do Ceará. Seus milagres, suas profecias, sua vida e morte (em 1934) já renderam, até hoje, no mínimo 300 títulos de cordel, muitos dos quais narram seu encontro com outro personagem fortíssimo na literatura popular: o cangaceiro Lampião.
Mistura de registro histórico com elementos míticos, a literatura de cordel era um importante meio de comunicação na parte ibérica da Europa, na Idade Média. Através dela, eram narradas aventuras de cavalaria, temas religiosos e histórias de amor.
Trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, a literatura de cordel foi reformulada e incorporada à cultura do Nordeste brasileiro, especialmente na Paraíba, em Pernambuco e no Ceará.
Este último chegou a abrigar o maior pólo de edição popular do Brasil, a tipografia São Francisco, em Juazeiro do Norte, na década de 50. Na época, cordéis como "O Romance do Pavão Misterioso", de José Camelo, eram considerados verdadeiros best-sellers:
"Eu vou contar uma história/ de um pavão misterioso/ que levantou vôo na Grécia/ com um rapaz corajoso/ raptando uma condessa/ filha de um conde orgulhoso."
Inspirado na cultura popular, o músico cearense Ednardo levou as aventuras do casal apaixonado do cordel para a partitura. "Pavão mysteriozo/ pássaro formoso/ um conde raivoso/ não tarda a chegar/ não temas minha donzela/ nossa sorte nessa guerra/ eles são muitos/ mas não podem voar."
Não só nesse caso cordel e música se aproximam. A rima do cordel se assemelha muito à do repente. Porém, enquanto o cordel é uma narrativa escrita, o repente é um duelo cantado. Não é raro, na praia do Futuro ou na Beira-Mar, ser abordado por uma dupla de repentistas disposta a duelar.
Vale qualquer tema: política, futebol, religião... Tudo em rimas.
(AMARÍLIS LAGE)


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