|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ITÁLIA-BRASIL
Celebração em Siena reúne grupos chamados contradas, que disputam corrida de cavalo duas vezes no ano
Festa do Palio traduz rivalidade medieval
GUSTAVO CHACRA
EM SIENA
Sob o sol da Toscana, apertando-se no meio de cerca de 10 mil
pessoas e sem poder ir ao banheiro por mais de cinco horas para
celebrar uma velha festa da colheita. Esse esforço é para ver a
Festa do Palio, que ocorre duas
vezes por ano, em 2 de julho e em
16 de agosto, na Piazza Il Campo,
no centro da cidade murada de
Siena, com sua tradicional corrida
de cavalos e o seu desfile de inspiração medieval com lançamento
de bandeiras.
Mas vale a pena esse esforço.
Afinal, a Festa do Palio ocorre
desde o século 13 e reflete uma das
mais antigas rivalidades bairristas
de todo o mundo.
Siena tem 17 contradas dentro
de seus muros. Cada contrada,
equivale a um bairro -com dimensões bem menores. Os nomes são simpáticos, como Pantera, Tartaruga, Girafa e Torre.
Cada uma dessas contradas tem
uma inimiga mortal. Por exemplo, a Loba é inimiga da Porco-Espinho, e a Águia, da Pantera. Como ao todo são 17 e cada uma tem
um inimigo, sobra uma contrada:
a Onda, que sonha em ser inimiga
da Torre, mas é ignorada. Inimiga
da Torre, só a Ganso. Além da
equipe hostil, as contradas têm
suas aliadas, suas amigas e as que
são indiferentes. Essas relações
são fundamentais para entender
como funciona a corrida no dia
do Palio, como veremos adiante.
Durante o ano, a contrada é o
centro da vida dos sieneses, quase
como um clube, mas isso não os
impede de casar com uma mulher
da contrada inimiga. Nem de um
morador da Torre votar em um
candidato a prefeito da Ganso.
Mas, na época do Palio, tudo
muda. A mulher volta para a casa
dos pais durante a semana que
antecede a festa para evitar brigas
com o marido devido à imensa rivalidade. E os "contradioli"
(membros da contrada) se reúnem nas ruas para jantar juntos e
analisar as estratégias para vencer
o Palio. Os que deixaram Siena
marcam suas férias nessa época e
vêm se juntar a suas famílias.
Das 17 contradas, apenas dez
podem participar da corrida. As
sete que não competiram no Palio
anterior e outras três que são sorteadas dentro da prefeitura. A
bandeira de cada uma das participantes é hasteada e tremula na
Piazza Il Campo.
Os capitães das contradas participantes escolhem os cavalos, e os
jóqueis são contratados em outras
partes da Itália, especialmente na
Sardenha. Para ganhar ou evitar
que a inimiga vença, vale tudo: subornar o jóquei adversário, fazer
acordos com uma aliada e tentar
até mesmo derrubar o cavalo (que
corre sem sela) rival na corrida.
Para assistir ao Palio, é preciso
chegar cedo a Siena. É melhor se
hospedar na cidade, mas na semana do evento, que coincide
com a alta temporada, fica muito
caro. Muitos turistas optam por se
hospedar em casas de família. Outros, como o repórter, preferem
ficar em Florença e viajar uma hora de trem para participar da festa
(a passagem custa 5,40).
Ao entrar pelos portões de Siena, já dá para sentir o clima.
O pai carregando a menina no
colo com o pano que identifica a
contrada favorita. As janelas com
as bandeiras da penduradas. Jovens bebendo com os lenços de
suas respectivas contradas na cabeça. Mais ou menos como uma
Copa do Mundo.
Como cada rua pertence a uma
contrada, é só olhar para as bandeiras hasteadas nos prédios para
saber em qual região se está.
Para assistir à festa, há três opções: pagar caríssimo para ficar
em uma das arquibancadas ao redor da piazza -cujos ingressos se
esgotam meses antes do Palio-,
ser convidado para ver os festejos
de um dos prédios em festas privadas ou fazer como a maioria
dos turistas: encarar o sol e ficar
horas no meio da praça.
Para pegar um lugar bom, é preciso chegar ao redor das 15h, cerca
de cinco horas antes da corrida. A
partir das 17h30, é proibido entrar
ou sair do meio da praça. Meia
hora mais tarde começa o desfile,
cujo ponto alto é o lançamento
das bandeiras, que ficou célebre
numa cena do filme "Sob o Sol da
Toscana".
Para todo jovem sienese, é um
grande orgulho ser um dos dois
lançadores de bandeira. Os outros
integrantes passam tocando tambores ou montando cavalos com
armaduras e lanças. Esse ritual
atravessou séculos e continua rigidamente igual.
Após o desfile, entram os cavalos que participarão da corrida, o
momento máximo do Palio.
Muitos sieneses preferem ir para casa para assistir à festa. Segundo eles, é melhor, porque as imagens da TV permitem que se tenha uma noção melhor do que está ocorrendo. No meio da praça, a
maioria é composta por turistas
estrangeiros.
Os cavalos são chamados um a
um: "Girafa, Torre, Tartaruga".
Não é como em um Jóquei Clube,
onde cada um fica em seu posto
de largada. A partir do momento
em que são chamados, já começa
o empurra-empurra entre os cavalos e jóqueis.
O último animal a ser chamado
já entra em alta velocidade, e a
corrida tem início assim que ele se
aproxima dos outros. São três voltas ao redor da praça. A corrida
dura cerca de 80 segundos. A torcida se desespera. É quase impossível que pelo menos um jóquei
não caia. Neste ano, na edição de
julho, dois foram para o chão. A
cada dez anos, dois morrem.
Mas não importa se o jóquei cai.
O cavalo pode continuar sozinho
e até vencer a prova. Foi justamente isso o que ocorreu em julho deste ano, com a vitória do cavalo da Girafa, para desespero da
Lagarta -a contrada inimiga.
Os vencedores invadem a praça
logo e comemoram por dias no
seu território. Ao longo do ano,
caminham com um ar de superioridade pelas ruas da cidade.
Os maiores perdedores são a
contrada inimiga e a segunda colocada -é pior ser segundo do
que último. Na última festa, na semana passada, a vencedora foi a
Tartaruga, desta vez, para tristeza
do pessoal da Caracol.
Apesar da rivalidade, os sieneses gostam de frisar que, fora dos
muros, todos se unem contra o
inimigo maior -Florença-,
com quem no passado já travaram guerras. E gostam de salientar que Siena conseguiu manter as
suas tradições enquanto em Florença, onde os turistas são tão
onipresentes quanto os prédios e
as esculturas históricas, pouco
restou das disputas medievais.
Texto Anterior: Pacotes Próximo Texto: Morte de animais ameaça corrida na cidade Índice
|