São Paulo, segunda, 25 de janeiro de 1999

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QUALQUER VIAGEM
Venha conhecer o primeiro verdadeiro astro pop britânico

DAVID DREW ZINGG
em Sampa

"Os membros da realeza britânica têm um sotaque muito peculiar. Mas imagino que, se você os acordasse de repente no meio da noite, falariam do mesmo jeito que todos nós."
Noel Coward em Firefly, Jamaica

Na próxima vez que você for a Londres, Joãozinho, quero convidar você para dar um passeio até o bairro dos teatros e conhecer um velho herói meu.
Não se trata exatamente dele mesmo, você entende, mas de uma bela estátua de bronze de Noel Coward, que acaba de ser inaugurada pela rainha-mãe no Theatre Royal, na Drury Lane. De maneira característica, mas fora de moda nos dias de hoje, Noel Coward segura um cigarro em sua mão direita.
Coward nasceu no meu mês, dezembro, no ano de 1899. Temos um ano inteiro pela frente para comemorar seu raro talento. Eu o conheci na década de 50, na Jamaica, onde ele morreu, em 1973.
Durante mais de 60 anos o nome de Noel Coward foi sinônimo do melhor do teatro inglês, na condição de ator, dramaturgo, compositor, cantor, memorialista e convidado de talk-shows. Coward simbolizou, para o resto do mundo, o que havia de melhor na alta classe britânica pré-Beatles, aquela da fleuma imperturbável. E seus bate-papos, que maravilha! E seu estilo!
Um crítico de teatro novaiorquino o qualificou como o Fred Astaire da réplica pronta. O corte de suas roupas era tão clássico que parecia ser anterior a seu nascimento.
Até mesmo seu nome, Noel Pierce Coward, ao mesmo tempo patrício e divertido, lhe cabia perfeitamente, disse a "New Yorker". A mesma coisa se aplicava ao cabelo loiro moldado a seu crânio com precisão digna de Savile Row, à pele esticada com elegância sobre os ossos angulosos de sua face e à pronúncia e ao estilo de seu inglês, tão nítidos e bem passados que envolviam seu "darling" (querido) mais casual num viés aguçado de implicações perfeitamente direcionadas.
Os gurus particulares de Noel Coward foram os mestres da frase inglesa torneada com inteligência. Ele aprendeu com Gilbert e Sullivan, os brilhantes satiristas da comédia musical britânica do século 19, e, do outro lado do Atlântico, com Cole Porter.


Coward, sua própria invenção Noel Coward renasce de repente aos 100 anos, voltando à moda. Ele nasceu pobre, em Clapham, onde sua mãe, que falava e agia com elegância para disfarçar sua pobreza, era obrigada a faxinar os banheiros de outras senhoras para que ela e Noel pudessem sobreviver. Traumatizado pela pobreza, Coward inventou e reinventou-se durante toda a vida.
Aos 10 anos de idade, abandonou a escola pelo palco. Aos 15, seu amante pintor "uraniano" (gay) de 35 anos morreu de tuberculose (provavelmente transmitida a Coward). Aos 20 e poucos anos, já era o escritor mais bem pago do mundo.
Aos 25 anos, Coward era famoso não apenas por seu sucesso, mas também por sua personalidade carismática, sua lânguida sofisticação, sua espirituosidade aguçada, seus amigos da realeza e seu gosto pelas coisas finas da vida.


Primeiro astro do Britpop? Neil Tennant, dos Pet Shop Boys, diz que Coward foi o primeiro verdadeiro astro pop britânico.
"A história do pop britânico não é feita apenas de sexo, vândalos e rock'n'roll", diz Tennant. "Também é uma tradição de estilo, humor arguto, ironia, ambivalência sexual e sofisticação ostentada, comunicada por meio da mídia. Essa tradição teve início com Noel Coward."
Segundo Tennant, Noel Coward conheceu e influenciou artistas como os Beatles. Eles queriam um pop que fosse glamuroso, belo, espirituoso, provocante.
Tudo isso pode ser ouvido nas gravações de Noel Coward: o modo de falar fascinantemente enxuto, as rimas incrivelmente espirituosas, as insinuações sexuais; o ar de alguém terrivelmente sensível descrevendo os comportamentos mais ultrajantes; o sentimentalismo belo, mas sem excessos.
Veja, por exemplo, "Poor Little Rich Girl", de 1925, a primeira canção de Noel Coward a virar um grande sucesso. Ela soa totalmente contemporânea. Fala de álcool, drogas, festas e indaga para que serve tudo isso. Ela encontra romantismo no puro e simples desespero do hedonismo. São temas do tipo que Brett Anderson, do Suede, autor de "Animal Nitrate" e "Beautiful Ones", poderia tratar hoje.
Nos 25 anos seguintes, Noel Coward continuaria a escrever um sucesso após outro: "Someday I'll Find You", "Mad Dogs and Englishmen", "London Pride", "Sail Away", canções que definiram a experiência britânica daqueles anos. Em termos de música pop britânica, pode- se afirmar que, antes dos Beatles, só existiu Noel Coward.
Coward era um homossexual que escrevia para o mercado de massas aparentemente heterossexual, 20 anos apenas após o julgamento de Oscar Wilde. Ele sempre se sentiu à vontade com sua sexualidade e, como os chamados "anti-gays" de hoje, se recusava a ser vítima de sua sexualidade ou deixar-se definir exclusivamente por ela.
Há muitos CDs de Noel Coward que você pode pedir pela Internet. Uma releitura recente das canções do mestre frágil é "Twentieth Century Blues: The Songs of Noel Coward", da EMI. O CD tem Sting, Paul McCartney, Marianne Faithful, Elton John e Neil Tennant, co-produtor do álbum. Os lucros auferidos das vendas são destinados aos programas britânicos de assistência a aidéticos.


Tradução de Clara Allain.



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