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FERNANDO GABEIRA
O Natal visto a partir de um congestionamento
Encaro o Natal como uma
fatalidade. Todos os anos,
em fins de novembro, começo a
me preparar mentalmente para
a semana decisiva. É uma versão
pessoal da tese sobre o ataque
inevitável: relaxar e gozar.
Este ano, entretanto, enfrentei
um dos maiores congestionamentos no trânsito de todos os
dezembros.
Estava com minhas filhas no
carro e cheguei a lhes dizer: temo
que o futuro seja assim.
Não pensem que utilizo essa situação para tiradas pedagógicas.
No fundo, estava dizendo para
mim mesmo que havia algo de
insustentável no ar.
Chegando à minha casa, vi
uma propaganda de carro. Eram
um diretor de cinema e seu assistente preparando a cena em que
o carro cairia no precipício.
Mas o carro era tão bonito que
decidiram refazer o roteiro:
quem caiu do alto da ribanceira
foi o motorista, e o carro seguiu
impávido.
Não podia ser mais claro. As
máquinas são muito mais importantes do que os seres humanos, o trabalho morto triunfa sobre o vivo. Enfim, todas as ilações
que se podem tirar de um anúncio como esse.
Nada como o Natal para observarmos o triunfo das coisas, que
se anunciam nos embrulhos e
permanecem por alguns dias na
embalagem amassada, nas fitas
vermelhas, nas notas fiscais para
troca do que não serviu, nos restos do peru na geladeira.
Neste dezembro do Rio, ano
acabando, o século e o milênio
acabando, não deixa de ser interessante observar esse avanço esmagador da mercadoria. Duas
interrogações me dominam nesta época do ano.
A primeira delas se refere a Jesus Cristo. Como são diferentes
as expectativas e a realidade
-um nascimento celebrado para enfatizar o divino no humano
termina por criar um cipoal de
pacotes, cestas de Natal, notas
fiscais e cheques pré-datados.
A segunda interrogação é também inquietante. O carro, inventado para garantir a suprema liberdade de deslocamento, acaba
sendo uma prisão nos congestionamentos modernos.
Enlatados e incomodados com
a fumaça que nos envolve, caímos num mundo de "stop and
go", uma quilométrica ironia.
Em busca do otimismo
Existem muitos caminhos para cada um escapar do pessimismo. Pode-se imaginar que esse
impacto das coisas no Natal acabe provocando uma reação espiritualizada, uma espécie de volta
às origens.
Isso seria uma grande coisa,
embora esse intenso processo de
comercialização ainda continue
sendo uma espécie de escolha esmagadoramente majoritária.
Pode-se avançar um pouco na
meditação. A letra da canção de
Chico Buarque e Ruy Guerra fala
da tradicional distância lusitana
entre a intenção e o gesto.
Pois bem: essa distância entre o
discurso e o gesto parece ser algo
válido para a própria civilização
ocidental.
Como dizem alguns autores
pessimistas, ela permeia a própria condição humana.
Para superar o desconforto do
nascimento, tenta-se construir
um conforto no mundo exterior,
algo que compense a perda do
útero.
O resultado dessa busca acaba
sendo uma espécie de matricídio
ambiental.
Acho essa explicação limitada
porque a referência nunca é apenas o nascimento, mas também
a morte. E, na luta contra a morte, a humanidade construiu
imensos legados estéticos. Cada
obra é um pequeno triunfo.
Vale deixar essa janela, uma
vez que marchamos também para o Ano Novo e, cedendo um
pouco o peso das mercadorias,
poderemos, quem sabe, comemorar o milênio que começa.
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