São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2000

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FERNANDO GABEIRA

O Natal visto a partir de um congestionamento

Encaro o Natal como uma fatalidade. Todos os anos, em fins de novembro, começo a me preparar mentalmente para a semana decisiva. É uma versão pessoal da tese sobre o ataque inevitável: relaxar e gozar.
Este ano, entretanto, enfrentei um dos maiores congestionamentos no trânsito de todos os dezembros.
Estava com minhas filhas no carro e cheguei a lhes dizer: temo que o futuro seja assim.
Não pensem que utilizo essa situação para tiradas pedagógicas. No fundo, estava dizendo para mim mesmo que havia algo de insustentável no ar.
Chegando à minha casa, vi uma propaganda de carro. Eram um diretor de cinema e seu assistente preparando a cena em que o carro cairia no precipício.
Mas o carro era tão bonito que decidiram refazer o roteiro: quem caiu do alto da ribanceira foi o motorista, e o carro seguiu impávido.
Não podia ser mais claro. As máquinas são muito mais importantes do que os seres humanos, o trabalho morto triunfa sobre o vivo. Enfim, todas as ilações que se podem tirar de um anúncio como esse.
Nada como o Natal para observarmos o triunfo das coisas, que se anunciam nos embrulhos e permanecem por alguns dias na embalagem amassada, nas fitas vermelhas, nas notas fiscais para troca do que não serviu, nos restos do peru na geladeira.
Neste dezembro do Rio, ano acabando, o século e o milênio acabando, não deixa de ser interessante observar esse avanço esmagador da mercadoria. Duas interrogações me dominam nesta época do ano.
A primeira delas se refere a Jesus Cristo. Como são diferentes as expectativas e a realidade -um nascimento celebrado para enfatizar o divino no humano termina por criar um cipoal de pacotes, cestas de Natal, notas fiscais e cheques pré-datados.
A segunda interrogação é também inquietante. O carro, inventado para garantir a suprema liberdade de deslocamento, acaba sendo uma prisão nos congestionamentos modernos.
Enlatados e incomodados com a fumaça que nos envolve, caímos num mundo de "stop and go", uma quilométrica ironia.

Em busca do otimismo
Existem muitos caminhos para cada um escapar do pessimismo. Pode-se imaginar que esse impacto das coisas no Natal acabe provocando uma reação espiritualizada, uma espécie de volta às origens.
Isso seria uma grande coisa, embora esse intenso processo de comercialização ainda continue sendo uma espécie de escolha esmagadoramente majoritária.
Pode-se avançar um pouco na meditação. A letra da canção de Chico Buarque e Ruy Guerra fala da tradicional distância lusitana entre a intenção e o gesto.
Pois bem: essa distância entre o discurso e o gesto parece ser algo válido para a própria civilização ocidental.
Como dizem alguns autores pessimistas, ela permeia a própria condição humana.
Para superar o desconforto do nascimento, tenta-se construir um conforto no mundo exterior, algo que compense a perda do útero.
O resultado dessa busca acaba sendo uma espécie de matricídio ambiental.
Acho essa explicação limitada porque a referência nunca é apenas o nascimento, mas também a morte. E, na luta contra a morte, a humanidade construiu imensos legados estéticos. Cada obra é um pequeno triunfo.
Vale deixar essa janela, uma vez que marchamos também para o Ano Novo e, cedendo um pouco o peso das mercadorias, poderemos, quem sabe, comemorar o milênio que começa.


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