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FERNANDO GABEIRA
Um mestre do país do futebol
Se disser que foi uma semana
apenas emocional, estarei
mentindo. Ela serviu para que
aprendesse algumas coisas, que já
estavam na cabeça, soltas, desarticuladas, talvez inúteis.
O primeiro impacto foi o contato com o livro de memórias do escritor colombiano Gabriel García
Márquez, "Vivir para Contarla",
editado pela Mondadori, que não
se intimidou com a extensão do
trabalho: 579 páginas.
Uma viagem de volta a Aracataca, ao lado da mãe, que tentaria vender a casa da família, nos
coloca de frente com o mundo
real que inspirou o escritor. Seu
ajuste de contas com os nomes,
personagens, episódios, abraços,
olhares, enfim, parte do material
emocional que iria elaborar ao
longo da sua carreira de escritor.
Além do fascínio por aquela região, que tinha sido rica com as
empresas bananeiras, da magia
do escritor, o livro de memórias,
mesmo sem essas qualidades,
sempre nos remete à infância, às
nossas lembranças, a uma tentativa de reconstruir a trajetória de
nossos dias numerados, que começam com a data de nascimento e terminam com a da morte.
Essa lembrança voltou à mente,
no cemitério do Catumbi, quando enterrávamos, no meio da semana, o grande jornalista esportivo Oldemário Touguinhó, uma
verdadeira lenda das redações cariocas. Almeida, que era redator
da "Época", olhou para um túmulo, onde constavam as duas
datas essenciais, e me disse:
"Lembra-se daquele filme, "Os
Dias São Contados'?".
Nem precisava me lembrar,
porque o tema já me perseguia ao
longo da semana. García Márquez discutia com a mãe e resistia
à tristeza do pai, que o queria formado em Direito. Era escritor,
queria se dedicar a isso, e nada o
afastaria de seu rumo.
Oldemário, que morreu aos 68
anos, amava o futebol e o jornalismo. Queria isso. Era apaixonado pelo seu trabalho. Às vezes, na
embriaguez dos anos 60, eu o
achava um pouco ingênuo. Ele
desprezava a política, era um marido fiel e, às duas horas da manhã, num bar onde todos consumiam álcool, resistia com sua
água mineral, no melhor humor
do mundo.
À sua maneira, sabia das coisas
muito mais do que nós. Era apaixonado pela mulher e pelo futebol. Através dele, indo e vindo de
Copas do Mundo, seguindo todos
os jogos importantes e todos os
craques, conseguiu viver as verdades essenciais da vida, como a
solidariedade, a amizade e o reconhecimento do gênio humano,
que ele viu desabrochar nas pernas tortas de Garrincha, nos reflexos do menino Pelé.
No final da vida de Garrincha,
quem cuidava dele era Oldemário, agradecido como brasileiro e
botafoguense pela alegria que o
jogador trouxe ao povo. Internações, dinheiro, pedidos aos hospitais, Oldemário fazia tudo para
que Mané Garrincha tivesse uma
velhice digna. No entanto jamais
discriminou os medíocres, buscando emprego para eles como
contínuos ou motoristas de jornal
quando estavam acabados para o
esporte. No mundo do esporte, ele
experimentou a ligação com a
humanidade de uma forma profunda e radical.
Num país que tem o melhor futebol do mundo, deveríamos tirar
o chapéu para a nossa crônica esportiva, que produziu também,
como Oldemário, craques eternos
nas suas posições: João Saldanha,
Sandro Moreyra, Nelson Rodrigues, Roberto Drummond, para
ficar apenas nos que morreram
há pouco tempo.
O cruzamento desse livro de
Márquez com a vida de Oldemário Touguinhó subitamente ficou
claro para mim, quando pensei
no destino de minhas filhas e no
equívoco pedagógico de querer
diversificar sua formação com temas que não as interessam.
Aprendi que o essencial para se
conhecer o mundo é estar apaixonado pelo seu tema. Através dele,
todos os elementos essenciais acabam se integrando de uma forma
harmônica e duradoura.
Como éramos limitados nos
anos 60, víamos Oldemário Touguinhó apenas como um bom repórter esportivo. Era um mestre.
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