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São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Um mestre do país do futebol

Se disser que foi uma semana apenas emocional, estarei mentindo. Ela serviu para que aprendesse algumas coisas, que já estavam na cabeça, soltas, desarticuladas, talvez inúteis.
O primeiro impacto foi o contato com o livro de memórias do escritor colombiano Gabriel García Márquez, "Vivir para Contarla", editado pela Mondadori, que não se intimidou com a extensão do trabalho: 579 páginas.
Uma viagem de volta a Aracataca, ao lado da mãe, que tentaria vender a casa da família, nos coloca de frente com o mundo real que inspirou o escritor. Seu ajuste de contas com os nomes, personagens, episódios, abraços, olhares, enfim, parte do material emocional que iria elaborar ao longo da sua carreira de escritor.
Além do fascínio por aquela região, que tinha sido rica com as empresas bananeiras, da magia do escritor, o livro de memórias, mesmo sem essas qualidades, sempre nos remete à infância, às nossas lembranças, a uma tentativa de reconstruir a trajetória de nossos dias numerados, que começam com a data de nascimento e terminam com a da morte.
Essa lembrança voltou à mente, no cemitério do Catumbi, quando enterrávamos, no meio da semana, o grande jornalista esportivo Oldemário Touguinhó, uma verdadeira lenda das redações cariocas. Almeida, que era redator da "Época", olhou para um túmulo, onde constavam as duas datas essenciais, e me disse: "Lembra-se daquele filme, "Os Dias São Contados'?".
Nem precisava me lembrar, porque o tema já me perseguia ao longo da semana. García Márquez discutia com a mãe e resistia à tristeza do pai, que o queria formado em Direito. Era escritor, queria se dedicar a isso, e nada o afastaria de seu rumo.
Oldemário, que morreu aos 68 anos, amava o futebol e o jornalismo. Queria isso. Era apaixonado pelo seu trabalho. Às vezes, na embriaguez dos anos 60, eu o achava um pouco ingênuo. Ele desprezava a política, era um marido fiel e, às duas horas da manhã, num bar onde todos consumiam álcool, resistia com sua água mineral, no melhor humor do mundo.
À sua maneira, sabia das coisas muito mais do que nós. Era apaixonado pela mulher e pelo futebol. Através dele, indo e vindo de Copas do Mundo, seguindo todos os jogos importantes e todos os craques, conseguiu viver as verdades essenciais da vida, como a solidariedade, a amizade e o reconhecimento do gênio humano, que ele viu desabrochar nas pernas tortas de Garrincha, nos reflexos do menino Pelé.
No final da vida de Garrincha, quem cuidava dele era Oldemário, agradecido como brasileiro e botafoguense pela alegria que o jogador trouxe ao povo. Internações, dinheiro, pedidos aos hospitais, Oldemário fazia tudo para que Mané Garrincha tivesse uma velhice digna. No entanto jamais discriminou os medíocres, buscando emprego para eles como contínuos ou motoristas de jornal quando estavam acabados para o esporte. No mundo do esporte, ele experimentou a ligação com a humanidade de uma forma profunda e radical.
Num país que tem o melhor futebol do mundo, deveríamos tirar o chapéu para a nossa crônica esportiva, que produziu também, como Oldemário, craques eternos nas suas posições: João Saldanha, Sandro Moreyra, Nelson Rodrigues, Roberto Drummond, para ficar apenas nos que morreram há pouco tempo.
O cruzamento desse livro de Márquez com a vida de Oldemário Touguinhó subitamente ficou claro para mim, quando pensei no destino de minhas filhas e no equívoco pedagógico de querer diversificar sua formação com temas que não as interessam. Aprendi que o essencial para se conhecer o mundo é estar apaixonado pelo seu tema. Através dele, todos os elementos essenciais acabam se integrando de uma forma harmônica e duradoura.
Como éramos limitados nos anos 60, víamos Oldemário Touguinhó apenas como um bom repórter esportivo. Era um mestre.

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