São Paulo, segunda, 27 de abril de 1998

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QUALQUER VIAGEM
O leão não ruge; esta noite ele está dormindo

DAVID DREW ZINGG
em Sampa

"MacBeth: "... uma história
Contada por um idiota, repleta de som e de fúria
Que não significam nada'.
Entra um mensageiro
"Vens para usar tua língua; conta tua história, já!'
Mensageiro: ... "devo contar o que vi,
Mas não sei como fazê-lo'." Ato 5º, cena 5ª

Agora quem se foi é Mike Reardon, o leão do há muito tempo extinto Lion's Head Bar, em Greenwich Village.
Com ele morre a história de mais um dos bares nova-iorquinos que molharam as goelas e alimentaram as fogueiras filosóficas de alguns dos hércules literários da grande cidade.
"The Head", como o bar era chamado por seus frequentadores, assumiu o encargo de criar e alimentar os literatos depois que aquele outro animal famoso, o White Horse, sofreu a invasão de multidões de curiosos desejosos de sentar-se no lugar que Dylan Thomas ocupou na noite em que bebeu até entrar em coma (a localização da cadeira mudava de noite para noite, dependendo do tamanho da gorjeta que o turista pagava ao barman).
Mailer vira Cagney irlandês
Mike Reardon, o proprietário do Lion's Head Bar, era irlandês, fato que provavelmente explica porque Norman Mailer se transformava no belicoso ator celta James Cagney quando entrava para tomar uma dose de Old Bushmills, ocorrência bastante frequente.
Um dos amigos entendidos em Nova York que tio Dave tem, o famoso fotógrafo de celebridades para a "Vanity Fair" Jonathan Becker, acertou ao comentar a fecundidade dos escritores que frequentavam a casa.
Certa noite, enquanto tomava um malte irlandês, Becker comentou: "O Lion's Head é um lugar onde judeus bebem como irlandeses e irlandeses escrevem como judeus".
"Mas o lugar está virando uma bagunça", me disse Reardon certa noite. "Muitos dos escritores mais velhos pararam de beber, para não morrerem antes da hora, e os mais jovens nunca chegaram a beber da maneira profissional que faziam os velhos."
Um repórter de jornal que é a quintessência do nova-iorquino, Pete Hamill, foi um dos que decepcionaram seu velho amigo nesse sentido. Reardon disse que Hamill foi um daqueles que "desistiram de beber ou mudaram-se para Nova Jersey" -um final impensável para a vida de um bebedor.
Quanto a Hamill, tinha uma visão um pouco mais compreensiva das qualidades essenciais de Reardon.
"Mike deveria ter sido um arcebispo", disse Hamill. "Ele não era amargo nem ressentido, e sua paciência era infinita. Ele não tinha vaidade suficiente para ter sido papa, mas compreendia o pecado e tinha uma capacidade infinita de perdoar. Aliás, para aguentar essa multidão toda por todos aqueles anos, não poderia ter sido diferente."
Como bom irlandês, Reardon era capaz de se defender numa conversa ao vivo, mas seu papel básico era servir uísque forte e ouvir seus fregueses. Estes não deixavam de ser bons no quesito papo. Basta ver uma lista parcial de nomes:
Frank McCourt, o premiado autor de "Angela's Ashes"; o ator Rod Steiger, que usava o Lion's Head como endereço de correspondência, mas raramente se dava ao trabalho de abrir as cartas que vinha buscar no local; a belíssima atriz Jessica Lange, que não era considerada a garçonete mais bonitinha da casa na época em que trabalhou no bar.
Os políticos não demoraram a adotar o hábito de frequentar o "The Head". A casa tinha um clima aconchegante, que atraía políticos gringos.
Três prefeitos nova-iorquinos adotaram o "The Head" como sua casa predileta: John Lindsay, o efervescente Edward Koch e o afro-americano David Dinkins.
Até os inevitáveis Kennedys tomavam seus goles aqui. A família irlandesa de Boston apreciava um bom bar irlandês. John, Teddy e Bobby dividiam seu tempo entre os prazeres líquidos do P.J. Clarke's, no centro, e os do Lion's Head, em Greenwich Village.
Tragédia literária
Na primeira vez em que Bobby Kennedy bebeu no "The Head", foi responsável por uma perda literária histórica de grandes proporções.
Foi no "loo", ou banheiro, que a tragédia aconteceu.
O banheiro masculino tinha uma coleção de pichações, possivelmente as mais letradas e irônicas em todo o mundo de língua inglesa da época.
Mas, quando Mike Reardon e seus amigos ouviram falar que Bobby, o secretário norte-americano da Justiça, estava a caminho da casa para tomar uns drinques, ficaram um pouco nervosos e passaram um pano nas paredes do banheiro.
Uma das minhas jóias favoritas que foram apagadas dizia: "Minha mãe me fez homossexual".
Debaixo dela, alguém havia escrito: "Se eu mandar uns novelos de lã para ela, será que ela faz o mesmo comigo?".


Tradução de Clara Allain



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