São Paulo, quinta-feira, 28 de julho de 2005

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Sob a revolução, sobrevivem parabólicas e batom

NO IRÃ

Quem visita o Irã, por mais que percorra cada canto do país, vai conhecer apenas metade dele. Nas casas da classe média, num universo alheio ao corre-corre do turista, a vida privada pouco tem a ver com o cotidiano restritivo imposto pela República Islâmica, que forja a imagem de um país atrasado, inculto ou perigoso.
Na sala de estar de sua casa, num bairro ao sul de Teerã, Hamid, engenheiro aposentado da usina nuclear e membro de um grupo de montanhistas, orgulha-se dos 700 canais do Ocidente que sintoniza com a antena parabólica, equipamento formalmente proibido, mas disseminado.
Como qualquer iraniano, evita comentar a polêmica mundial em torno do programa nuclear. Prefere sintonizar seu canal preferido, com transmissões de ópera -arte rara no Irã, onde as mulheres são proibidas de cantar.
No quarto, o filho Mehdi, estudante de engenharia, dedilha no violão uma das "Bachianas" do brasileiro Heitor Villa-Lobos, com partitura trazida da Europa por seu professor de música. Nascido semanas antes da revolução que implantou o regime dos aiatolás no país, em 1979, Mehdi, que não conhece um mundo diferente, sonha com uma vida fora do Irã, embalado por relatos de parentes refugiados na Alemanha.
Na mesma tarde, Behrang, jovem tenor que acabara de tornar-se amigo da família, convida todos para assistir a um ensaio de coral. Depois de 40 minutos do trânsito caótico pela capital, junta-se a outras vozes para mais um ensaio. "É preciso disposição e uma certa coragem para cantar."
O regente incomoda-se com o desencontro das vozes na ária final e, num ímpeto, indica uma das sopranos para fazer um solo. Os outros se calam, ouvindo o som individual melodioso, provavelmente banido da série de apresentações que fariam em poucas semanas.
O engenheiro e o cantor reúnem-se novamente dois dias depois, para um almoço promovido pelo pai de Behrang, advogado aposentado, formado em Londres, que insiste em oferecer uísque aos convidados, como prova de que "ainda existe liberdade no país", onde a bebida alcoólica é banida. Era Ramadã e apenas o jovem Behrang, por razões filosóficas, e não religiosas -faz questão de frisar-, segue o jejum, sob risos e chacotas da família.
Sua mãe, tradutora de inglês e italiano, lamenta que os filhos só conheçam o mundo da revolução. No quarto de sua irmã mais nova, Mojdeh, pôsteres dos Beatles misturam-se com fotos de Kurt Cobain, impressas da internet. Uma coleção de discos de rock sobre a mesa merece explicação: "São piratas, adquiridos no mercado negro. Todo mundo compra", diz.

Islã à Jackie Kennedy
Na saída, todos se juntam para uma foto. Diante das lentes, Kyana, uma jovem amiga da família, aparentando não mais que 15 anos, se desespera. Não quer ser fotografada usando o delicado lenço de seda rosa. Sua atitude não é incomum. Obrigadas por lei a usar manto e véu, as jovens iranianas protestam como podem. Com o rosto maquiado, enormes óculos escuros, apertam seus lenços à moda de Jackie Kennedy, com um pequeno nó abaixo do queixo, seguido por outro na nuca. Vestem os mantos já moldados ao corpo e de corte europeu com largos cinturões de couro, criando uma atmosfera que remete à ocidental década de 60.
Em uma festa de aniversário, mães preocupadas relatam casos de amigas que tiveram as filhas presas pela polícia de costumes por usarem mantos que pouco cumprem a função de esconder as formas do corpo feminino. "Não é grave, mas incomoda ter que ir até lá", contam. Enquanto isso, as jovens filhas usando minissaias e blusas de um ombro só, assim como muitas mães, esboçam uma espécie de dança do ventre clubber ao som de música eletrônica com uma batida iraniana.
Na mesma semana, Moojan encontra o namorado Ardalon em uma pizzaria no bairro jovem da cidade. Entre uma mordida e outra na pizza de salsicha, conta que gostaria de viver com o irmão em Londres. "Aqui não posso morar sozinha. É proibido", reclama enquanto toma uma Zam-Zam, o refrigerante preto do Irã, e ajeita o véu, deixando aparecer o cabelo escuro, com moderno corte rente e mechas douradas.
Na saída, sentindo falta de cerveja para acompanhar a pizza, saca o celular e, após trocar algumas palavras em farsi, anuncia: "Meu amigo está chegando com a cerveja. É só ligar. Traz o que a gente quiser: cerveja, uísque, drogas...". (ALB e CV)


*Os nomes citados foram trocados

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