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Sob a revolução, sobrevivem parabólicas e batom
NO IRÃ
Quem visita o Irã, por mais que
percorra cada canto do país, vai
conhecer apenas metade dele.
Nas casas da classe média, num
universo alheio ao corre-corre do
turista, a vida privada pouco tem
a ver com o cotidiano restritivo
imposto pela República Islâmica,
que forja a imagem de um país
atrasado, inculto ou perigoso.
Na sala de estar de sua casa,
num bairro ao sul de Teerã, Hamid, engenheiro aposentado da
usina nuclear e membro de um
grupo de montanhistas, orgulha-se dos 700 canais do Ocidente que
sintoniza com a antena parabólica, equipamento formalmente
proibido, mas disseminado.
Como qualquer iraniano, evita
comentar a polêmica mundial em
torno do programa nuclear. Prefere sintonizar seu canal preferido, com transmissões de ópera
-arte rara no Irã, onde as mulheres são proibidas de cantar.
No quarto, o filho Mehdi, estudante de engenharia, dedilha no
violão uma das "Bachianas" do
brasileiro Heitor Villa-Lobos,
com partitura trazida da Europa
por seu professor de música. Nascido semanas antes da revolução
que implantou o regime dos aiatolás no país, em 1979, Mehdi, que
não conhece um mundo diferente, sonha com uma vida fora do
Irã, embalado por relatos de parentes refugiados na Alemanha.
Na mesma tarde, Behrang, jovem tenor que acabara de tornar-se amigo da família, convida todos para assistir a um ensaio de
coral. Depois de 40 minutos do
trânsito caótico pela capital, junta-se a outras vozes para mais um
ensaio. "É preciso disposição e
uma certa coragem para cantar."
O regente incomoda-se com o
desencontro das vozes na ária final e, num ímpeto, indica uma
das sopranos para fazer um solo.
Os outros se calam, ouvindo o
som individual melodioso, provavelmente banido da série de apresentações que fariam em poucas
semanas.
O engenheiro e o cantor reúnem-se novamente dois dias depois, para um almoço promovido
pelo pai de Behrang, advogado
aposentado, formado em Londres, que insiste em oferecer uísque aos convidados, como prova
de que "ainda existe liberdade no
país", onde a bebida alcoólica é
banida. Era Ramadã e apenas o
jovem Behrang, por razões filosóficas, e não religiosas -faz questão de frisar-, segue o jejum, sob
risos e chacotas da família.
Sua mãe, tradutora de inglês e
italiano, lamenta que os filhos só
conheçam o mundo da revolução.
No quarto de sua irmã mais nova,
Mojdeh, pôsteres dos Beatles misturam-se com fotos de Kurt Cobain, impressas da internet. Uma
coleção de discos de rock sobre a
mesa merece explicação: "São piratas, adquiridos no mercado negro. Todo mundo compra", diz.
Islã à Jackie Kennedy
Na saída, todos se juntam para
uma foto. Diante das lentes, Kyana, uma jovem amiga da família,
aparentando não mais que 15
anos, se desespera. Não quer ser
fotografada usando o delicado
lenço de seda rosa. Sua atitude
não é incomum. Obrigadas por lei
a usar manto e véu, as jovens iranianas protestam como podem.
Com o rosto maquiado, enormes
óculos escuros, apertam seus lenços à moda de Jackie Kennedy,
com um pequeno nó abaixo do
queixo, seguido por outro na nuca. Vestem os mantos já moldados ao corpo e de corte europeu
com largos cinturões de couro,
criando uma atmosfera que remete à ocidental década de 60.
Em uma festa de aniversário,
mães preocupadas relatam casos
de amigas que tiveram as filhas
presas pela polícia de costumes
por usarem mantos que pouco
cumprem a função de esconder as
formas do corpo feminino. "Não
é grave, mas incomoda ter que ir
até lá", contam. Enquanto isso, as
jovens filhas usando minissaias e
blusas de um ombro só, assim como muitas mães, esboçam uma
espécie de dança do ventre clubber ao som de música eletrônica
com uma batida iraniana.
Na mesma semana, Moojan encontra o namorado Ardalon em
uma pizzaria no bairro jovem da
cidade. Entre uma mordida e outra na pizza de salsicha, conta que
gostaria de viver com o irmão em
Londres. "Aqui não posso morar
sozinha. É proibido", reclama enquanto toma uma Zam-Zam, o
refrigerante preto do Irã, e ajeita o
véu, deixando aparecer o cabelo
escuro, com moderno corte rente
e mechas douradas.
Na saída, sentindo falta de cerveja para acompanhar a pizza, saca o celular e, após trocar algumas
palavras em farsi, anuncia: "Meu
amigo está chegando com a cerveja. É só ligar. Traz o que a gente
quiser: cerveja, uísque, drogas...".
(ALB e CV)
*Os nomes citados foram trocados
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