São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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FERNANDO GABEIRA

A França que amamos e o francês chamado Le Pen

Passei um domingo colado à televisão francesa, perplexo com o que estava vendo: a ascensão de Jean Marie Le Pen ao segundo turno das eleições presidenciais. Na manhã seguinte, constatei que outras pessoas fizeram o mesmo. Temos algumas coisas em comum: somos amigos da França, todos angustiados em ver o país do asilo condenado a escolher entre a direita e a extrema-direita, esta tantas vezes acusada, com razão, de racismo contra os imigrantes e também contra os judeus.
Le Pen foi processado cinco vezes por racismo. Numa delas, afirmou que o Holocausto era um episódio sem significado histórico. É um homem perigoso, que coloca em xeque o grande flanco da democracia, isto é, permitir que os inimigos cresçam no seu bojo.
De madrugada, com tantas explicações, era possível entender o que passou. O erro não foi apenas da esquerda, que marchou fragmentada. Foi também dos institutos de pesquisa, da mídia que considera a eleição chata.
Isso ajudou a deixar em casa os 200 mil votos que faltaram aos socialistas. O índice de abstenção entre os jovens foi de 40%. No meio das férias da primavera, os mais velhos que ficaram em suas cidades votaram nas eleições presidenciais.
A bandeira antiimigrantista de Le Pen, com retoques de anti-semitismo, acaba nos colocando diante do grande tema moderno: as migrações globais, dinamizadas pelo declínio colonial e o fim da Segunda Guerra Mundial.
Outro dia, junto com Carlos Vainer e Neide Patarra, dois estudiosos do assunto, tivemos a oportunidade de debatê-lo diante de alunos de um curso do IBGE. A parte que me tocava eram os direitos humanos aplicados ao tema das migrações.
Sempre que há grandes migrações, costuma haver por trás delas gigantescas violações dos direitos humanos. E, quando você deixa um lugar porque violaram seus direitos humanos, quase sempre você encontra um novo lugar onde de novo os direitos humanos serão violados. É a dupla vitimização, que está sempre em jogo nesses milhões de destinos.
O que doeu nas eleições francesas foi também pensar nos milhões de imigrantes, brasileiros inclusive, e sentir com eles que uma idéia vital como a dos direitos humanos pudesse ser posta em perigo ali, onde tanto se formulou sobre eles, onde pareciam ser um princípio inabalável.
O curioso é que Le Pen se coloca contra a globalização. Talvez acredite que seja possível não somente deter o processo, mas também mandar todos de novo para suas casas, como se existisse volta para milhões de vidas deslocadas pelo avanço implacável do capitalismo.
Quando houve o 11 de setembro, todos perguntavam: "Como foi possível?". As eleições francesas são esse tipo de acontecimento, que merece longas reflexões sobre sua causa.
O tema da segurança, inflacionado pela direita, estava na cabeça de 58% dos eleitores. Junto dele também está o medo dos jovens do subúrbio, que, apesar dos 2 milhões de novos empregos abertos por Jospin, ainda não encontram horizontes na sociedade francesa. E também há a questão das culturas, da intolerância, a mesma semente que envenena o Oriente Médio e que produziu o 11 de setembro.
A previsão é de que Chirac ganhe e a esquerda tenha uma boa performance nas eleições legislativas. Nada disso apagará o sinal amarelo aceso com a vitória de Le Pen. Na verdade, um alerta válido para todos nós, aqui nos trópicos. Pensou bem meu amigo Adauto Novais, planejando um encontro internacional sobre civilizações no Brasil. Um dos valores brasileiros é a tolerância entre diferentes culturas. Precisamos fundamentá-la teoricamente.
Temos o hábito de dizer que o Brasil é um país tolerante porque se abriu a gente vinda de todos os lados do mundo. A questão é que os outros grandes países capitalistas também são hoje sociedades multiculturais. Aqui árabes e judeus se manifestam juntos pela paz e vivem harmoniosamente.
A ascensão de Le Pen ao segundo turno questiona um desses valores nacionais que gostaríamos de universalizar. Isso responde à pergunta: o que temos a ver com uma eleição deserdada pelos próprios jovens do país?
Assim, a presença de 300 mil palestinos no Brasil questiona nossa relativa quietude diante do massacre de Jenin.
O Brasil está no mundo, o mundo está no Brasil, um mundo dolorido que promete riqueza para todos, mas que nos últimos tempos tem oferecido tragédias concretas, como a de Jenin, e também morais, como o primeiro turno na França.


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