São Paulo, Domingo, 02 de Janeiro de 2000


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CRÍTICA

Velhos balanços, novos românticos

Fernando de Barros e Silva

BALANÇO, retrospectiva, previsões, perspectivas. Você provavelmente nunca viu nem ouviu tanto essas palavras como nos últimos dias. Ao ritual fastidioso de todos os anos, neste a mídia contou com dois aliados de peso para engordar o seu cardápio-o século e o milênio. Sim, será só em 2001, todos sabemos, mas quem se importa?
Ensaiar a essa altura um balanço dos balanços seria como prolongar inadvertidamente a justa ressaca do leitor. Passou, ainda bem, e hoje já é domingo, dia de finalmente descansar do bombardeio. O fato é que ficamos todos, jornalistas em geral, colunistas particularmente, meio sem assunto nestes dias carregados de ansiedade. É verdade que também somos acometidos por uma certa idiotia (além da habitual, digo), que nos empurra a fazer os tais balanços, as previsões sempre tão inúteis. Na semana seguinte, ou hoje talvez, ninguém mais se lembra delas, as previsões, o que é tanto um sinal da sua insanidade quanto do bom senso que ainda resta ao público. Os balanços, por sua vez, também se perdem em imagens fugidias ou se cristalizam em clichês que ficam ecoando na memória: Hitler, a bomba atômica, Pelé, a Copa de 70, Albert Einstein, o Muro de Berlim -todos símbolos como que pendurados no varal da eternidade. A pretexto de fazer história, ou de passá-la em revista, os balanços produzem apenas mais um espetáculo.
O que prevalece é a lógica do show da vida, uma espécie de ilusão grandiosa que anestesia a falta de grandeza, ou muitas vezes de sentido, do cotidiano e do tempo presente. Nas glórias e nos traumas do passado, nos desafios e nas expectativas em relação ao futuro, o segredo inconfesso desses balanços e previsões é quase sempre o mesmo: o mal-estar em relação ao presente. Toda época é ruim quando se vive nela, alguém já disse. Os pessimistas costumam ter razão, infelizmente.

A Rede Globo exibiu nas últimas terça e quarta-feira, em duas partes, o especial "100 Anos de Música". Os programas traziam as 31 melhores canções do século, escolhidas por um extenso júri e apresentadas por intérpretes variados, em arranjos inéditos. Detenho-me um pouco neste "balanço musical do século" na sua versão global, sintomático do mal-estar brasileiro hoje.
A proposta, diga-se logo, não poderia ser melhor. A música popular se constituiu, ao longo do século, na principal manifestação da cultura brasileira. Nem o cinema ou o teatro, nem a literatura ou as artes plásticas, a despeito de seus gênios isolados e de seus momentos decisivos dentro da cultura nacional, tiveram o impacto, a repercussão e sobretudo a permanência da música sobre a vida brasileira. De Noel Rosa a Cartola, de Tom Jobim a Chico Buarque, de Adoniran Barbosa a Elis Regina, de João Gilberto a Caetano Veloso (entre tantos outros: Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Ary Barroso etc...), a MPB funcionou como centro de referência, ou catalisador, das aspirações brasileiras. Sua difusão por assim dizer universal, capaz de cativar de cima a baixo uma sociedade tão desigual, como que embutia uma promessa de reconciliação, de felicidade.
O especial da Globo se valeu desse patrimônio comum construído ao longo de décadas, mas, ao reuni-lo num programa, jogou uma grande idéia no lixo. Aspirações brasileiras ou preciosidades da cultura popular foram empacotadas num programa de auditório recheado de vips na platéia, ao estilo do showbiz americano, com arranjos invariavelmente melados, orquestrais no pior sentido, como se a dignidade do material selecionado dependesse da profusão de violinos e gravatas-borboleta. O fim.
Toda essa pompa, espécie de decalque da nossa "americanalhação", avalizada pela turma do anel de doutor, que explicava à ralé o seu próprio gosto, foi acompanhada por interpretações muitas vezes indigentes, em alguns casos criminosas. A Globo estabeleceu uma hierarquia musical supostamente séria para dissolvê-la a seguir em escolhas "estéticas" pautadas por critérios baratos de mercado. Cem anos de música foram subordinados aos mesmos parâmetros e propósitos dos shows do "Domingão do Faustão", postos a serviço de um romantismo de pacotilha, que exprime uma cultura que, assim como o país, perdeu o pé e usa também o passado, devidamente idealizado numa aquarela, para se refestelar com sua própria crise. Acredite: novos-ricos da incultura nacional transformaram "Desafinado" num hino dramático e "Travessia" em hit neo-sertanejo.
Pois é, quem acompanhou o especial da Globo pôde comprovar que nosso pendor romântico é congênito. Sempre tivemos queda pelo lirismo, pela natureza idealizada, pelo tempero do sexo ou do afeto, talvez para compensar a violência atroz de uma história construída sobre a escravidão e a segregação de quase todos. A Globo reinventou e pasteurizou cem anos de romantismo popular.
Com esse trunfo, quem precisa de Roberto Carlos?


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