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CRÍTICA
"South Park", uma utopia americana
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
É cada vez mais numeroso na TV norte-americana, e no resto do mundo por tabela, um gênero
híbrido de entretenimento -os desenhos animados para adultos. Em
muitos casos, são classificados explicitamente
como impróprios para
menores. Seria preciso
perguntar, antes de tudo,
que adultos são esses. O
público de um desenho
como "Beavis &
Butt-Head", exibido no
início da madrugada pela
MTV, deve ser formado
principalmente por adolescentes que se divertem
vendo a própria oligofrenia refletida na tela.
A dupla de personagens, fanática por videoclipes, incapaz de formular uma única frase que
junte sujeito e predicado,
é o casamento perfeito
entre o que restou da
contracultura e o consumismo selvagem. Beavis
e Butt-Head não estão
muito distantes daqueles
adolescentes que emitem
ruídos no "Programa Livre", de Serginho Groisman. Ainda há pouco pudemos ver esses jovens
exercitando a sua fúria
contra o presidente da
República numa entrevista ao vivo. "E aí, presidente, você não acha
que tá tirando o corpo
dos problemas?". Dizer
que sejam despolitizados
seria ocioso diante da total incapacidade de dar
algum sentido a uma
agressividade que gira
em falso, contra tudo e
todos, e que acaba se traduzindo em conformismo e boçalidade. Parecem padecer de algum
mal-estar na incultura ou
na incivilização.
Mas, voltando aos desenhos, a intenção da
maioria deles tem sido
atacar o que genericamente se costumou chamar de modo de vida
americano. A família típica, o comportamento
politicamente correto, a
vocação pragmática e os
pendores místicos daquela sociedade são expostos ao ridículo e submetidos a um escárnio
que tem algo de didatizante e programático. A
forma desse tripúdio oscila da ironia mais fina,
com pretensões intelectuais, caso de "Os Simpsons" e do "Dr. Katz",
ao humor escatológico e
à violência mais desabrida, geralmente a cargo de
crianças. Pertence a essa
última vertente o desenho "South Park", que
estréia nesta semana no
canal Multishow, da
Net/Multicanal, depois
de ter virado em poucos
meses coqueluche nacional nos EUA.
O título é inspirado numa cidadezinha provinciana cuja peculiaridade
é ser considerada a capital mundial da ufologia,
local privilegiado de contatos com extraterrestres
e experiências paranormais. No centro de
"South Park" estão
quatro garotos, média de
oito anos, que são tudo
aquilo que você gostaria
que seus filhos nunca
fossem. Um deles vomita
na cara de uma menina
sempre que esta lhe dirige a palavra; outro, o
gorducho da turma, peida constante e estridentemente em público. São
capazes de cruzar um elefante com um porco e assistem apáticos, em todos os episódios, à morte
do amigo mais pobre da
turma, a qual ocorre
sempre da maneira mais
estúpida e é seguida pelo
comentário lacônico dos
demais: "Mataram o
Kenny".
Não há um traço, um
ícone ou um comportamento da cultura americana que não esteja na
mira do escracho amalucado de "South Park":
perus mutantes criados
em laboratório devoram
casais apaixonados em
parques bucólicos; extraterrestres são contactados a partir de uma sonda espacial embutida no
ânus de um dos garotos;
um etíope faminto é adotado pelo grupo porque
em troca disso um programa de TV lhes promete um relógio digital.
"Por que você é tão pobre, o seu pai também é
alcoólatra?", pergunta o
gorducho enquanto
apresenta o africano flagelado a uma rede de fast
food.
Seres mutantes, alienígenas, assistencialismo,
comportamento politicamente correto, relações
familiares -tudo parece
passível de ser triturado
pelo liquidificador escatológico de "South
Park".
Seria o caso de perguntar se essa maneira de enxovalhar o "american
way of life" não seria,
também ela, uma exaltação desse mesmo estilo
de vida. Sim, porque, se a
voga politicamente correta é, no fundo, um
grande eufemismo, o desenho parece ser um eufemismo em negativo, ou
refletido no espelho, como se dissesse ao espectador: "aqui, e apenas
aqui, se é verdadeiramente livre para pensar e
dizer o que quiser. Nós
inventamos a liberdade,
mas não como um conceito, um ideal inatingível, como fizeram os europeus, e sim na prática,
como um modo de ser
que exercitamos diariamente". É essa também a
mensagem de um filme
como "O Povo contra
Larry Flynt", de Milos
Forman.
"South Park" parece
abrir assim uma porta escancarada. Crianças são
usadas como instrumento de desrecalque de uma
sociedade que sempre
soube incorporar aos esquemas da indústria cultural aquilo que um dia
foi feito ou pensado para
atormentá-la. A própria
mentalidade politicamente correta é o rescaldo e a versão privatizada
da contracultura.
A sociedade americana
tem isso de paradoxal: é
cínica e bem-intencionada, fascista e liberal, puritana e pornográfica,
mística e ultrapragmática. Esse é o verdadeiro
"american way of life", o
fundamento de um país
que desde a sua origem
pensou a democracia como uma maneira de proteger o indivíduo do Estado, e não como uma
maneira de o Estado proteger os indivíduos; um
país que desde sempre
organizou a política de
modo que ela não existisse ou que ao menos não
atrapalhasse demais a lógica dos negócios. A utopia americana -a livre
circulação de mercadorias, materiais ou simplesmente ideológicas-
está realizada. De agora
em diante, essa sociedade
só precisa se preocupar,
como bem observou o
sociólogo francês Jean
Baudrillard, com "a duração e a permanência
dessa utopia". Pouco importa que ela dependa da
Disney World, de
"South Park" ou da gestação de "serial killers"
reais mal saídos das fraldas.
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