São Paulo, domingo, 3 de maio de 1998

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CRÍTICA
"South Park", uma utopia americana

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

É cada vez mais numeroso na TV norte-americana, e no resto do mundo por tabela, um gênero híbrido de entretenimento -os desenhos animados para adultos. Em muitos casos, são classificados explicitamente como impróprios para menores. Seria preciso perguntar, antes de tudo, que adultos são esses. O público de um desenho como "Beavis & Butt-Head", exibido no início da madrugada pela MTV, deve ser formado principalmente por adolescentes que se divertem vendo a própria oligofrenia refletida na tela.
A dupla de personagens, fanática por videoclipes, incapaz de formular uma única frase que junte sujeito e predicado, é o casamento perfeito entre o que restou da contracultura e o consumismo selvagem. Beavis e Butt-Head não estão muito distantes daqueles adolescentes que emitem ruídos no "Programa Livre", de Serginho Groisman. Ainda há pouco pudemos ver esses jovens exercitando a sua fúria contra o presidente da República numa entrevista ao vivo. "E aí, presidente, você não acha que tá tirando o corpo dos problemas?". Dizer que sejam despolitizados seria ocioso diante da total incapacidade de dar algum sentido a uma agressividade que gira em falso, contra tudo e todos, e que acaba se traduzindo em conformismo e boçalidade. Parecem padecer de algum mal-estar na incultura ou na incivilização.
Mas, voltando aos desenhos, a intenção da maioria deles tem sido atacar o que genericamente se costumou chamar de modo de vida americano. A família típica, o comportamento politicamente correto, a vocação pragmática e os pendores místicos daquela sociedade são expostos ao ridículo e submetidos a um escárnio que tem algo de didatizante e programático. A forma desse tripúdio oscila da ironia mais fina, com pretensões intelectuais, caso de "Os Simpsons" e do "Dr. Katz", ao humor escatológico e à violência mais desabrida, geralmente a cargo de crianças. Pertence a essa última vertente o desenho "South Park", que estréia nesta semana no canal Multishow, da Net/Multicanal, depois de ter virado em poucos meses coqueluche nacional nos EUA.
O título é inspirado numa cidadezinha provinciana cuja peculiaridade é ser considerada a capital mundial da ufologia, local privilegiado de contatos com extraterrestres e experiências paranormais. No centro de "South Park" estão quatro garotos, média de oito anos, que são tudo aquilo que você gostaria que seus filhos nunca fossem. Um deles vomita na cara de uma menina sempre que esta lhe dirige a palavra; outro, o gorducho da turma, peida constante e estridentemente em público. São capazes de cruzar um elefante com um porco e assistem apáticos, em todos os episódios, à morte do amigo mais pobre da turma, a qual ocorre sempre da maneira mais estúpida e é seguida pelo comentário lacônico dos demais: "Mataram o Kenny".
Não há um traço, um ícone ou um comportamento da cultura americana que não esteja na mira do escracho amalucado de "South Park": perus mutantes criados em laboratório devoram casais apaixonados em parques bucólicos; extraterrestres são contactados a partir de uma sonda espacial embutida no ânus de um dos garotos; um etíope faminto é adotado pelo grupo porque em troca disso um programa de TV lhes promete um relógio digital. "Por que você é tão pobre, o seu pai também é alcoólatra?", pergunta o gorducho enquanto apresenta o africano flagelado a uma rede de fast food.
Seres mutantes, alienígenas, assistencialismo, comportamento politicamente correto, relações familiares -tudo parece passível de ser triturado pelo liquidificador escatológico de "South Park".
Seria o caso de perguntar se essa maneira de enxovalhar o "american way of life" não seria, também ela, uma exaltação desse mesmo estilo de vida. Sim, porque, se a voga politicamente correta é, no fundo, um grande eufemismo, o desenho parece ser um eufemismo em negativo, ou refletido no espelho, como se dissesse ao espectador: "aqui, e apenas aqui, se é verdadeiramente livre para pensar e dizer o que quiser. Nós inventamos a liberdade, mas não como um conceito, um ideal inatingível, como fizeram os europeus, e sim na prática, como um modo de ser que exercitamos diariamente". É essa também a mensagem de um filme como "O Povo contra Larry Flynt", de Milos Forman.
"South Park" parece abrir assim uma porta escancarada. Crianças são usadas como instrumento de desrecalque de uma sociedade que sempre soube incorporar aos esquemas da indústria cultural aquilo que um dia foi feito ou pensado para atormentá-la. A própria mentalidade politicamente correta é o rescaldo e a versão privatizada da contracultura.
A sociedade americana tem isso de paradoxal: é cínica e bem-intencionada, fascista e liberal, puritana e pornográfica, mística e ultrapragmática. Esse é o verdadeiro "american way of life", o fundamento de um país que desde a sua origem pensou a democracia como uma maneira de proteger o indivíduo do Estado, e não como uma maneira de o Estado proteger os indivíduos; um país que desde sempre organizou a política de modo que ela não existisse ou que ao menos não atrapalhasse demais a lógica dos negócios. A utopia americana -a livre circulação de mercadorias, materiais ou simplesmente ideológicas- está realizada. De agora em diante, essa sociedade só precisa se preocupar, como bem observou o sociólogo francês Jean Baudrillard, com "a duração e a permanência dessa utopia". Pouco importa que ela dependa da Disney World, de "South Park" ou da gestação de "serial killers" reais mal saídos das fraldas.



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