São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

A noite de núpcias

EUGÊNIO BUCCI

EM MUITA gente causou estranheza a longuíssima participação do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, no "Jornal Nacional" de segunda-feira. Ele permaneceu no estúdio, ao lado de William Bonner, durante toda a duração do noticiário. Ao longo da entrevista, recebeu homenagens em forma de videoclipe, com tomadas em câmera lenta de comícios imensos, oceânicos, derramados. Bandeiras vermelhas tremulavam em êxtase no vídeo, num fervor rubro-proletário de deixar no chinelo o mais ensandecido culto à personalidade do mais apologético realismo socialista -e o mais emocional dos arroubos emocionados de Duda Mendonça. Para o bem ou para o mal, foi de chorar.
Lula falou livremente. Contou episódios da corrida eleitoral, sempre bem-humorado, quase brincalhão. Lula está de bem com a vida e com Fátima Bernardes. Na viagem que o leva ao poder, o "Jornal Nacional" é escala obrigatória, como se sabe. Para Lula, foi uma escala prazerosa. Foi uma noite de núpcias.
A estranheza que essa lua-de-mel provoca em vários telespectadores é explicável. Muitos se perguntam: "Ora, mas não foi contra a Globo que Lula tomou o poder?". Bem, a pergunta é por demais polarizada e não deixa ver a ambiguidade da situação. Lula está chegando ao poder contra alguns discursos e contra alguns preconceitos que antes se achavam refestelados na tela da Globo, é verdade, mas não contra a Globo em termos absolutos. Passada a eleição, muitos desses preconceitos e desses discursos tendem a silenciar. Vão sair de fininho. Ao mesmo tempo, certos signos, como uma bandeira vermelha, que antes tinham uma carga negativa, passam a ser identificadas com virtudes heróicas: determinação, coragem, sede de justiça. Agora são "do bem". A simbologia política do Brasil ganha nova iconografia. As velhas imagens se vão, como os anéis que abandonam os dedos. A Globo, como os dedos que ficam, também fica.
Não são mudanças abruptas. Elas já se anunciavam durante a cobertura da campanha eleitoral. Agora, cristalizam-se no horário nobre. Lula, que em 1989 era um índice de perturbação, de desordem e de radicalismo, adquire o status de mito definitivo. Em plena tela da Globo. Portanto, não é bem "contra a Globo que ele tomou o poder", mas dentro da Globo. Lula, enfim, não é mais aquele de 1989. Claro que não. A Globo também não é. Pronto. Em 2002, ambos se encontram em lua-de-mel.
Insisto mais um pouco na ambiguidade da noite nupcial. De um ponto de vista mais cético, ela pode indicar a simples absorção do líder-operário-que-virou-presidente pela linguagem melodramática da TV, que sempre concorreu para despolitizar o país. Por aí, a edulcoração da figura do presidente serviria para neutralizar o que há nele de contestador, de grevista, desvinculando-o de sua origem. Mas, como falamos de uma ambiguidade, a noite de núpcias também pode indicar o oposto: um aprimoramento do telejornalismo global. Nascido sob o autoritarismo militar, esse telejornalismo era apenas um melodrama noticioso destinado a produzir o imaginário pacificador para os brasileiros excluídos do poder e da riqueza. Agora, talvez ele esteja mais aberto às contradições reais do cotidiano desses mesmos brasileiros, contradições que não costumavam aparecer na TV. Não importa se esse aprimoramento é motivado por um instinto bajulatório da emissora, pelo seu governismo compulsivo e reincidente. O fato é que, ainda que de modo ambíguo, ele acontece.
Aí é que surge a pergunta que interessa: será que o melodrama adulador reduzirá o presidente a uma atração inofensiva do horário nobre? Ou será que o movimento que levou Lula ao poder imporá mudanças mais profundas na estrutura do melodrama noticioso e, enfim, na própria televisão brasileira? Para saber a resposta, só vendo os próximos capítulos.


Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo
Próximo Texto: Filmes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.