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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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CRÍTICA

Xingou por quê?

MARCELO RUBENS PAIVA

HÁ POUCOS dias, testemunhei uma cena que me teletransportou para um passado recente. Um sujeito aparentemente bêbado xingava uma van da Rede Globo. O veículo estacionado não impedia a sua passagem. Como um totem, mantinha-se sólido e imponente, com a sua cor desigual, enfeitado pelo logotipo "globo-olho".
O que o pedestre destratava? O silêncio da emissora durante a luta pela Anistia e liberdades democráticas, quando a censura já havia sido levantada? A sua teimosia em desprezar o início do empolgante movimento das Diretas Já? A falta de pluralidade na cobertura da disputa entre Collor e Lula? A demora para abraçar a causa do impeachment do primeiro?
Já houve um tempo difícil para o jornalismo da Globo. Eventualmente, seus profissionais eram xingados, seus carros, depredados. Em muitos casos, os repórteres faziam reportagens sem o logo da empresa em seus microfones. E o que eles diziam não era confiável. A emissora, que empregou tantos perseguidos pelo regime militar, que nunca aceitou uma lista negra, não alimentou uma caça às bruxas em que comunistas de carteirinha, como Dias Gomes, assinavam a sua teledramaturgia, viveu uma dualidade provocando ódio e suspeita em muitos.
Seguindo uma lógica aristotélica, pode-se afirmar que a Globo não era uma emissora de direita convicta, afinada completamente com a ideologia de um regime autoritário. Era bem pior: ela apenas se acovardava.
Conseguiu em poucos anos de vida transformar a TV no eletrodoméstico mais atraente de uma casa brasileira. Cláudia Abreu, no filme "Ed Mort", representando uma apresentadora de programa infantil, canta para as câmeras: "Coma em frente à TV, durma em frente à TV, brinque em frente à TV, viva em frente da TV!". O Brasil viveu em frente à Globo como nunca havia feito antes, foi fiel e, depois, sentiu-se traído.
Hoje, seu jornalismo procura erguer um alto grau de credibilidade. Nas últimas eleições, foi surpreendentemente isenta, confrontando seu histórico. É evidente que num Estado em que a concessão de uma emissora de TV é revista periodicamente, ou em que há eventuais isenções fiscais camaradas para a importação de equipamentos, ou em que o grosso da verba publicitária está na mão do homem público, a independência de informações sempre estará contaminada por uma promíscua relação.
"Teleleilão" é o gênero que mais cresce na TV brasileira . São três os programas, "TV Shopping Brasil", "Medalhão Persa" e "1001 Noites", que vendem tapetes, jóias e quadros. Somados aos "Shoptime" e "Shoptour", delata-se a dissimulada vocação das emissoras, vender, como um armarinho da esquina. Durante anos, a Globo nos ofereceu lotes de notícias de referência duvidosa. Comparando, era como se um anel de ouro leiloado pela CNT, que exibe o "1001 Noites", fosse, na verdade, de legítimo latão.
Os dramas existenciais da emissora levavam muitos telespectadores, que os americanos chamam de "consumidores", a rever cada notícia. Será que agora seus consumidores fecharão negócios em quatro vezes o valor solicitado? O Brasil seria outro sem a Rede Globo? Seria melhor? Até quando durará este rancor? Até lá, muitos sujeitos aparentemente bêbados continuarão a xingar o seu logo.
Detalhe penoso: havia três ocupantes no carro, e nenhum deles reagiu nem quando o pedestre deu um tapa no capô, antes de sair fora. O totem emudeceu-se resignado.

A COLUNISTA BIA ABRAMO ESTÁ DE LICENÇA



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