São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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CRÍTICA

O Ratinho da Globo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Boa noite. Medo. Impotência. Desamparo. São sentimentos cada vez mais presentes no cotidiano de todos nós. Nós que vivemos no dia-a-dia cercados por uma violência cega, uma violência que nos oprime. A partir de hoje você está em linha direta com seu direito, em linha direta com a cidadania".
Esse é o texto de abertura do primeiro "Linha Direta", exibido às quintas-feiras pela Globo desde a semana passada.
Foi declamado pausadamente, em tons graves e sinistros, pelo repórter Marcelo Rezende, apresentador do programa. O mesmo Marcelo Rezende que há pouco mais de dois anos exibia no "Jornal Nacional" as cenas de espancamento de inocentes, um deles assassinado, por policiais na Favela Naval, em Diadema, em reportagem justamente reconhecida.
O mesmo Marcelo Rezende que em novembro do ano passado entrevistou Francisco de Assis Pereira, o "maníaco do parque", para o "Fantástico", em reportagem que também ficou famosa, mas pela carga inédita de obscurantismo, de fato "fantástica".
"Linha Direta" é herdeiro desta última, aliás menos uma reportagem que um show macabro, onde até videntes e astrólogos eram mobilizados para sustentar a tese delirante de que Assis Pereira era um ser endemoninhado, responsável por "mais de cem mortes", como o repórter o induzia a admitir.
A Globo e o próprio Rezende reconheceram depois "excessos" e "erros de edição" (eufemismos ridículos diante da barbárie que puseram no ar), mas gostaram dos números que viram no Ibope.
Sempre há público para esse tipo de coisa, e a Globo, depois de hesitar e adiar várias vezes a estréia do "Linha Direta", parece que está disposta a continuar estimulando a regressão coletiva, com ou sem videntes e outras caricaturas de sábios, pouco importa.
O espectador do "Linha Direta" primeiro assiste a simulações de crimes, dramatizados por atores. O texto que acompanha as imagens é inspirado nos programas policiais de rádio: recheado de clichês, sentimentalismo e terror. A música de fundo oscila conforme a cena, romântica ou idílica quando se narra a vida da vítima, sombria ou aterrorizante quando os assassinos entram em ação.
O segredo do programa está em mobilizar e manipular emoções primitivas, em arrancar lágrimas e em provocar pânico na audiência.
Acuado em frente à TV, esse espectador então é convocado a participar pelo telefone, oferecendo pistas para a solução de crimes ou delatando supostos criminosos, cujas imagens são postas no ar.
É isso o que Rezende e a Globo chamam de "linha direta com a cidadania", o que, além de piada mau gosto, é mais uma evidência do barateamento de uma noção raramente praticada, mas que serve para dar um verniz de dignidade às piores barbaridades.
Ninguém razoável supõe que a interatividade das emissoras com seu público, muito em voga, tenha algo a ver com democracia ou cidadania, pelo menos não na forma que é praticada hoje. Como todo mundo sabe, ou deveria saber, trata-se apenas de uma estratégia para aliciar espectadores em nome da disputa pela audiência.
É menos grave quando esse populismo de mercado solicita do espectador que escolha o final de uma historieta de quinta, caso do "Você Decide", ou quando pede que ele ajude a fazer o "Fantástico" da próxima semana.
É mais grave quando, depois de semear o medo e fazer com que o espectador se sinta parte de uma comunidade imaginária de pessoas de bem cercada e ameaçada por tribos do mal, pede-se a ele que atue como linha auxiliar da polícia -e dessa polícia.
Como escreveu Marilena Chaui em seu livro "Conformismo e Resistência -Aspectos da Cultura Popular no Brasil", a TV costuma criar um espaço social sui generis porque "substitui o espaço social concreto, feito de divisões, (...) por um espaço homogêneo e transparente, aberto a todos e no qual os indivíduos privatizados e isolados ganham a ilusão de pertencer a uma comunidade -do "nós espectadores", passa-se imediatamente ao "nós brasileiros"".
Embora o raciocínio tenha sido feito em outro contexto, mais amplo, ajuda a entender o "Linha Direta". Sintonizado com a época atual, o seu populismo não é apenas mercadológico. A forma com que apresenta a violência e as soluções que oferece ao problema são inspiradas pela cartilha da extrema-direita. Os comportamentos que mobiliza e as reações que provoca não deixam dúvidas de que esse programa está, sim, em linha direta -com o fascismo.


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