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CRÍTICA
O Ratinho da Globo
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
"Boa noite. Medo. Impotência. Desamparo.
São sentimentos cada vez
mais presentes no cotidiano de todos nós. Nós
que vivemos no dia-a-dia
cercados por uma violência cega, uma violência
que nos oprime. A partir
de hoje você está em linha direta com seu direito, em linha direta com a
cidadania".
Esse é o texto de abertura do primeiro "Linha
Direta", exibido às quintas-feiras pela Globo desde a semana passada.
Foi declamado pausadamente, em tons graves
e sinistros, pelo repórter
Marcelo Rezende, apresentador do programa. O
mesmo Marcelo Rezende
que há pouco mais de
dois anos exibia no "Jornal Nacional" as cenas
de espancamento de inocentes, um deles assassinado, por policiais na Favela Naval, em Diadema,
em reportagem justamente reconhecida.
O mesmo Marcelo Rezende que em novembro
do ano passado entrevistou Francisco de Assis
Pereira, o "maníaco do
parque", para o "Fantástico", em reportagem
que também ficou famosa, mas pela carga inédita
de obscurantismo, de fato "fantástica".
"Linha Direta" é herdeiro desta última, aliás
menos uma reportagem
que um show macabro,
onde até videntes e astrólogos eram mobilizados
para sustentar a tese delirante de que Assis Pereira era um ser endemoninhado, responsável por
"mais de cem mortes",
como o repórter o induzia a admitir.
A Globo e o próprio
Rezende reconheceram
depois "excessos" e
"erros de edição" (eufemismos ridículos diante
da barbárie que puseram
no ar), mas gostaram dos
números que viram no
Ibope.
Sempre há público para
esse tipo de coisa, e a
Globo, depois de hesitar
e adiar várias vezes a estréia do "Linha Direta",
parece que está disposta
a continuar estimulando
a regressão coletiva, com
ou sem videntes e outras
caricaturas de sábios,
pouco importa.
O espectador do "Linha Direta" primeiro assiste a simulações de crimes, dramatizados por
atores. O texto que
acompanha as imagens é
inspirado nos programas
policiais de rádio: recheado de clichês, sentimentalismo e terror. A
música de fundo oscila
conforme a cena, romântica ou idílica quando se
narra a vida da vítima,
sombria ou aterrorizante
quando os assassinos entram em ação.
O segredo do programa
está em mobilizar e manipular emoções primitivas, em arrancar lágrimas e em provocar pânico na audiência.
Acuado em frente à TV,
esse espectador então é
convocado a participar
pelo telefone, oferecendo
pistas para a solução de
crimes ou delatando supostos criminosos, cujas
imagens são postas no ar.
É isso o que Rezende e a
Globo chamam de "linha direta com a cidadania", o que, além de piada mau gosto, é mais
uma evidência do barateamento de uma noção
raramente praticada,
mas que serve para dar
um verniz de dignidade
às piores barbaridades.
Ninguém razoável supõe que a interatividade
das emissoras com seu
público, muito em voga,
tenha algo a ver com democracia ou cidadania,
pelo menos não na forma
que é praticada hoje. Como todo mundo sabe, ou
deveria saber, trata-se
apenas de uma estratégia
para aliciar espectadores
em nome da disputa pela
audiência.
É menos grave quando
esse populismo de mercado solicita do espectador que escolha o final de
uma historieta de quinta,
caso do "Você Decide",
ou quando pede que ele
ajude a fazer o "Fantástico" da próxima semana.
É mais grave quando,
depois de semear o medo
e fazer com que o espectador se sinta parte de
uma comunidade imaginária de pessoas de bem
cercada e ameaçada por
tribos do mal, pede-se a
ele que atue como linha
auxiliar da polícia -e
dessa polícia.
Como escreveu Marilena Chaui em seu livro
"Conformismo e Resistência -Aspectos da
Cultura Popular no Brasil", a TV costuma criar
um espaço social sui generis porque "substitui o
espaço social concreto,
feito de divisões, (...) por
um espaço homogêneo e
transparente, aberto a
todos e no qual os indivíduos privatizados e isolados ganham a ilusão de
pertencer a uma comunidade -do "nós espectadores", passa-se imediatamente ao "nós brasileiros"".
Embora o raciocínio tenha sido feito em outro
contexto, mais amplo,
ajuda a entender o "Linha Direta". Sintonizado com a época atual, o
seu populismo não é apenas mercadológico. A
forma com que apresenta
a violência e as soluções
que oferece ao problema
são inspiradas pela cartilha da extrema-direita.
Os comportamentos que
mobiliza e as reações que
provoca não deixam dúvidas de que esse programa está, sim, em linha
direta -com o fascismo.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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