São Paulo, Domingo, 07 de Março de 1999
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CAPA
Crise leva pais a inscreverem seus filhos em concursos da TV, como o de "Chiquititas", que deve receber 40 mil candidatos, e o de Raul Gil
Síndrome de Paquita

Matuiti Mayeso/Folha Imagem
Multidão formada no pátio do SBT no último domingo, em São Paulo, para inscrições no concurso da novela "Chiquititas"


ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
da Reportagem Local

Perder aula, tomar chuva, passar horas em uma fila sem água ou comida, levar cotoveladas e pisões no pé. Nada disso tira o ânimo de pais e filhos para realizar o sonho de ambos: tornar-se (ou ver o filho transformar-se em) um astro-mirim da TV.
Apesar do discurso de "realizar o sonho dos filhos", a crise econômica do país, que apresenta os mais altos índices de desemprego dos últimos 20 anos (9,18% na região metropolitana de São Paulo, segundo o IBGE), aparenta ser o motivador básico dessa nova febre: levar os filhos para participar de concursos na TV.
Só no domingo passado, 18 mil pessoas tumultuaram a sede da SBT, em Osasco, na Grande São Paulo. Foi preciso chamar a tropa de choque da PM para conter a multidão.
Motivo: era o primeiro dia de inscrição para seis vagas na novela infantil "Chiquititas".
O número é impressionante, até quando comparado ao concurso das Paquitas (Globo). Fenômeno na década de 80, na última seleção, feita no ano passado, "apenas" 8.500 adolescentes se inscreveram.
Cíntia Camargo Ramos, 9, acordou às 3h no domingo passado para ir à inscrição das chiquititas.
Acompanhada por mais duas pessoas, ela ficou 12 horas na fila, queimou-se no sol, passou fome, sede, foi empurrada, levou pisadas no pé e cotoveladas e chegou em casa aos prantos "de tanta decepção".
Cléber Augusto, 5, irmão de Cíntia, é o "Jacarezinho" do "Mini Tchan" -grupo de crianças organizado pelo "Programa Raul Gil" (Record) que dubla o grupo "É o Tchan".
Na última terça-feira, quase 2.000 pessoas encararam uma forte chuva para não perder o lugar no teste para a seleção promovida por Raul Gil.
O concurso não tem data para terminar, já que vem alcançando até 22 pontos no Ibope (cada ponto equivale a 80 mil telespectadores na Grande São Paulo).
Mesmo dizendo que "não almejam lucro" e que a prioridade é atender aos desejos dos filhos, a maioria dos pais ouvidos pela Folha -muitos dos quais desempregados- não nega que uma "ajuda" em casa não iria mal.
A diarista Rogéria Pereira Barbosa, 26, levou sua filha Pricila, 5, para tentar a sorte com Raul Gil e nas "Chiquititas".
Rogéria se anima ao pensar que a filha pode ganhar algum dinheiro dançando. "Acho legal, para melhorar a nossa vida. Criar uma filha sozinha é difícil", diz.
Pricila, que mora na Brasilândia (região noroeste de SP), passou seis horas de pé na chuva, comeu lanche e foi embora se contorcendo de vontade de ir ao banheiro. Mas ela já sabe como gastaria o dinheiro: em comida e roupas. "Quero comprar arroz, feijão e macarrão", diz.
Para Miriam Debieux Rosa, professora de psicologia da PUC e da USP, esse fenômeno vem da falta de esperança dos pais de alcançar realização profissional e inserção social.
"Isso é reflexo de um ambiente de desemprego. Os filhos trariam o sucesso econômico e social e a recuperação da auto-estima dos pais", explica.
Para o psiquiatra Francisco Assumpção Jr., "bombardeia-se" que é legal aparecer na mídia. "Os heróis modernos são os jogadores de futebol e as estrelas da TV", afirma.
Benedito Antonio da Silva, 35, ascensorista, e sua mulher Shirlei, 27, desempregada, acompanharam as filhas Suélen, 8, e Vanessa, 10, ao Raul Gil.
"Como querem ser alguma coisa na vida, elas têm de tentar desde criança. Elas devem começar a trabalhar cedo. Assim, crescem com futuro", acredita. As irmãs sonham em comprar uma casa.
Evelyn Passos de Oliveira, 9, tem um sonho mais prático: ganhar dinheiro para só fazer compras à vista. Modelo desde os 3 anos, guarda na poupança o dinheiro que ganha. Às vezes, até faz empréstimos para a mãe.
A pequena modelo quer "ter uma vida estável" e poder comprar presentes para a família: o pai, mecânico de aviação, e a mãe, que a acompanha sempre. "Queria dar um jogo de cozinha lindo para a minha mãe", diz.
Além do fator econômico, esses concursos também acabam fazendo com que muitos pais transfiram para os filhos os seus próprios sonhos.
"A maioria das mulheres adultas acha bacana ser modelo. Como não podem mais, colocam a filhinha de 3 anos em seu lugar", afirma Francisco Assumpção Jr., chefe do serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital das Clínicas da USP.
A governanta de hotel Rosemeire Teixeira Pinto, 30, se define como "sonhadora". "Faço com os meus filhos o que nunca tive coragem de fazer. Quero para eles o que não consegui para mim", diz.
Rosemeire veio de Jacareí (interior de SP) com sua filha Rafaela, 10, para uma vaga no Raul Gil.
A governanta conta que seu marido, metalúrgico, é contra. "Ele acha o meio artístico complicado e diz que devemos preservar a família em primeiro lugar", explica.
Sidnéia Ramos, mãe de Cíntia, Cléber Augusto (o "Jacarezinho") e Carlos, 12, diz lutar pelos sonhos dos filhos, mas não esconde a felicidade com a escolha deles. "Sempre quis ter uma filha modelo", afirma, orgulhosa.
Cléber tem participado do "Programa Raul Gil" todas as semanas. Apesar do sucesso, o menino ainda não ganha cachê.
"Estamos batalhando a parte financeira com a emissora porque não acho justo ele não ser pago. Temos muitos gastos e o Cléber está ajudando na audiência do programa", afirma Wal Pelosi, empresária de Cléber.
No caso das crianças "bem-sucedidas", o sucesso precoce acaba levando a uma revolução na estrutura da família. A criança passa a ser o provedor da casa.
Renata del Bianco, 13, interpretou a personagem Vivi no primeiro elenco das "Chiquititas". Atualmente, ela faz parte do grupo musical "As Crianças Mais Amadas do Brasil", com outros ex-chiquititos. É basicamente o dinheiro da miniatriz que sustenta a família.
"A família vive em função da Renata. Montamos uma assessoria, temos gastos com a aparência dela. Tudo é feito para ela e com o dinheiro dela", explica a mãe, Rosana del Bianco, 42.
A parcela de dinheiro que vai para Renata é guardada na poupança, a pedido da menina. "Vou deixar lá até que eu complete 18 anos", diz.
Apesar das remotas chances de serem selecionadas em um concurso de TV, as crianças não perdem as esperanças.
"Tenho gingado no corpo. A gente só precisa de uma chance para mostrar nosso talento", diz Jaqueline de Jesus,11. Ela saiu de São Miguel Paulista (zona leste) com suas vizinhas Liliane,11, e Luana Barbosa, 12, para se inscrever no "Programa Raul Gil".
As três vão sempre juntas tentar se inscrever nos concursos. "É só ter uma oportunidade e a gente está lá", diz Luana.
Como a maioria das concorrentes, o sonho das três meninas é comprar uma casa para os pais.
"Eu moro com a minha mãe, que está desempregada, e com o meu avô, aposentado. Queria dar conforto a ela, já que ela já fez a sua parte, que foi me colocar no mundo", raciocina Jaqueline.
É nessa responsabilidade, alerta a psicóloga Miriam Debieux, que está o problema. "Ser a salvação da família é pesado demais para a criança", diz.
Segundo a psicóloga, uma coisa é dançar ou fazer teatro em casa, outra é participar de um concurso. "A atividade deixa de ter o caráter lúdico. O que em casa não teria importância, como esquecer uma fala, passa a ser algo exigido."
Miriam aponta os programadores de TV como os principais responsáveis por esse fenômeno. "Eles têm de refletir sobre o que fazem, pois estão explorando o desespero familiar de pessoas desassistidas e desinformadas."
Quanto aos pais, eles deveriam procurar outras saídas para seus problemas. "Não estão cortando cana, mas ainda é trabalho infantil", diz Francisco Assumpção Jr.
"Deixe as crianças viverem a vida delas. Eles têm de brincar e não trabalhar", completa Miriam.


Informações:
"Chiquititas": tel. (011) 7087-3000; "Programa Raul Gil": tel. (011) 531-3782.




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