São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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A TV Cultura, o 0900 e a elite paulistana

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

A TV está sendo loteada por gigolôs. Vende-se tudo, a qualquer hora e a qualquer preço, sendo o chamado disque 0900 apenas o sintoma mais evidente disso. Ainda há pouco, esse telessorteio comprovadamente ilegal -não obstante tolerado pelo governo FHC- pôs a leilão, tal como um escravo de luxo, um jogador de futebol. Uma emissora e a notória Federação Paulista de Futebol, sócias na empreitada, festejaram o êxito.
O problema, diga-se logo, não está no fato de fazer dinheiro. Desde Balzac, pelo menos, sabe-se que por trás de toda fortuna há um crime, mas agora o negócio assumiu ares de máfia. Desde que seja suficiente para o rateio no fim do mês, vinga a lei do silêncio e aceita-se tudo.
Programas de auditório proliferam e sofisticam a sua antiga vocação, qual seja, a de tratar gente como cachorro ou animal exótico. As novelas, por sua vez, não satisfeitas com a audiência estúpida que têm, salpicam mais e mais suas péssimas historietas com merchandising de produtos -ou de qualquer produto. Recentemente, entre tapas e beijos, a novela das oito da Globo nos exibiu uma longa cena em torno das qualidades nutritivas de uma ração para gatos.
Estaríamos, no entanto, no melhor dos mundos se o problema desse reino animal televisivo fosse apenas de mau gosto ou de ausência de discernimento estético. É também, mas não é esse o ponto principal.
Tome-se, para entrar agora no assunto que realmente interessa, a polêmica recente envolvendo a TV Cultura. Endividada e sem receita suficiente para sustentar sua programação, a emissora -impedida, por definição, de anunciar ração- resolveu aumentar o caixa cobrando uma taxa compulsória na conta de luz dos usuários de energia. Para quê?
Houve uma onda de protestos raivosos. A classe média supostamente intelectualizada, usuária da TV Cultura, mostrou então sua cara -ou seu caráter. O Datafolha mediu: 51% dos que assistem sempre a TV Cultura são contra o pagamento; 70% entre as pessoas com segundo grau idem. É curioso, no entanto, que 88% dos entrevistados considerem a programação da Cultura ótima ou boa. Temos, pois, um enigma aparente que pede uma análise.
Antes que alguém esbraveje: a origem da indignação contra a taxa não está na eventual injustiça social da medida, já que os pobres (ou muitos deles) também deveriam pagar. (Esse é o aspecto condenável do projeto, aliás facilmente corrigível). O cerne da revolta está na mentalidade privatista, na alergia crônica e profunda a tudo que seja público e represente um avanço democrático ou republicano. Convocada a colaborar com melhoria, ou, mais diretamente, a salvar uma emissora estatal para torná-la ainda mais pública, a elite da classe média responde negando migalhas, dizendo "não pago mais esse imposto".
Meu amigo Vinicius Torres Freire, com quem, apesar de mim mesmo, estou sempre aprendendo alguma coisa, escreveu ainda há pouco um artigo nesta Folha em que mostrava como os paulistanos ricos são descendentes de João Romão, o personagem de "O Cortiço", de Aluísio Azevedo. Tipo asqueroso, Romão sobe na vida explorando um cortiço. Uma vez rico, decide virar barão do Império e aí traduz em ações a sua mentalidade de saqueador voraz, sem qualquer compromisso com o bem comum ou os outros. É, enfim, um brasileiro, cujos traços, aliás, são muito identificáveis na elite brasileira de hoje, que acredita estar se internacionalizando também em matéria de costumes, quando na verdade se crapuliza em ritmo acelerado para sobreviver ao massacre da globalização.
Pois bem, voltando. Ainda não vi nenhum movimento organizado contra os telessorteios. As pessoas entopem as linhas telefônicas atrás do seu quinhão de felicidade pessoal. Contra a TV Cultura, que dizem gostar -mas porque é chique e dá status gostar de uma emissora um pouco menos massificada-, foi o bafafá que se viu.
São provavelmente as mesmas pessoas que estudaram em colégios particulares e só por isso conquistaram as vagas mais disputadas da USP, onde então concluem sua formação financiadas pelo dinheiro público. Essa é a elite paulistana. Prefere a TV por assinatura e privada à TV pública e aberta. Extinga-se, pois, logo a TV Cultura, contra a intervenção do Estado na cultura e contra o Estado perdulário, bordões da era tucana. Joões Romões que são, os novos espectadores não precisam dela. Merecem estar na companhia de Ratinho e Gugu Liberato.



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