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A TV Cultura, o 0900 e a elite paulistana
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
A TV está sendo loteada
por gigolôs. Vende-se tudo, a qualquer hora e a
qualquer preço, sendo o
chamado disque 0900
apenas o sintoma mais
evidente disso. Ainda há
pouco, esse telessorteio
comprovadamente ilegal
-não obstante tolerado
pelo governo FHC- pôs
a leilão, tal como um escravo de luxo, um jogador de futebol. Uma
emissora e a notória Federação Paulista de Futebol, sócias na empreitada, festejaram o êxito.
O problema, diga-se logo, não está no fato de fazer dinheiro. Desde Balzac, pelo menos, sabe-se
que por trás de toda fortuna há um crime, mas
agora o negócio assumiu
ares de máfia. Desde que
seja suficiente para o rateio no fim do mês, vinga
a lei do silêncio e aceita-se tudo.
Programas de auditório
proliferam e sofisticam a
sua antiga vocação, qual
seja, a de tratar gente como cachorro ou animal
exótico. As novelas, por
sua vez, não satisfeitas
com a audiência estúpida
que têm, salpicam mais e
mais suas péssimas historietas com merchandising de produtos -ou de
qualquer produto. Recentemente, entre tapas e
beijos, a novela das oito
da Globo nos exibiu uma
longa cena em torno das
qualidades nutritivas de
uma ração para gatos.
Estaríamos, no entanto, no melhor dos mundos se o problema desse
reino animal televisivo
fosse apenas de mau gosto ou de ausência de discernimento estético. É
também, mas não é esse
o ponto principal.
Tome-se, para entrar
agora no assunto que
realmente interessa, a
polêmica recente envolvendo a TV Cultura. Endividada e sem receita
suficiente para sustentar
sua programação, a
emissora -impedida,
por definição, de anunciar ração- resolveu aumentar o caixa cobrando
uma taxa compulsória na
conta de luz dos usuários
de energia. Para quê?
Houve uma onda de
protestos raivosos. A
classe média supostamente intelectualizada,
usuária da TV Cultura,
mostrou então sua cara
-ou seu caráter. O Datafolha mediu: 51% dos que
assistem sempre a TV
Cultura são contra o pagamento; 70% entre as
pessoas com segundo
grau idem. É curioso, no
entanto, que 88% dos entrevistados considerem a
programação da Cultura
ótima ou boa. Temos,
pois, um enigma aparente que pede uma análise.
Antes que alguém esbraveje: a origem da indignação contra a taxa
não está na eventual injustiça social da medida,
já que os pobres (ou muitos deles) também deveriam pagar. (Esse é o aspecto condenável do
projeto, aliás facilmente
corrigível). O cerne da
revolta está na mentalidade privatista, na alergia crônica e profunda a
tudo que seja público e
represente um avanço
democrático ou republicano. Convocada a colaborar com melhoria, ou,
mais diretamente, a salvar uma emissora estatal
para torná-la ainda mais
pública, a elite da classe
média responde negando
migalhas, dizendo "não
pago mais esse imposto".
Meu amigo Vinicius
Torres Freire, com
quem, apesar de mim
mesmo, estou sempre
aprendendo alguma coisa, escreveu ainda há
pouco um artigo nesta
Folha em que mostrava
como os paulistanos ricos são descendentes de
João Romão, o personagem de "O Cortiço", de
Aluísio Azevedo. Tipo
asqueroso, Romão sobe
na vida explorando um
cortiço. Uma vez rico,
decide virar barão do Império e aí traduz em ações
a sua mentalidade de saqueador voraz, sem qualquer compromisso com
o bem comum ou os outros. É, enfim, um brasileiro, cujos traços, aliás,
são muito identificáveis
na elite brasileira de hoje,
que acredita estar se internacionalizando também em matéria de costumes, quando na verdade se crapuliza em ritmo
acelerado para sobreviver ao massacre da globalização.
Pois bem, voltando.
Ainda não vi nenhum
movimento organizado
contra os telessorteios.
As pessoas entopem as linhas telefônicas atrás do
seu quinhão de felicidade
pessoal. Contra a TV
Cultura, que dizem gostar -mas porque é chique e dá status gostar de
uma emissora um pouco
menos massificada-, foi
o bafafá que se viu.
São provavelmente as
mesmas pessoas que estudaram em colégios
particulares e só por isso
conquistaram as vagas
mais disputadas da USP,
onde então concluem sua
formação financiadas pelo dinheiro público. Essa
é a elite paulistana. Prefere a TV por assinatura e
privada à TV pública e
aberta. Extinga-se, pois,
logo a TV Cultura, contra
a intervenção do Estado
na cultura e contra o Estado perdulário, bordões
da era tucana. Joões Romões que são, os novos
espectadores não precisam dela. Merecem estar
na companhia de Ratinho e Gugu Liberato.
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