São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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TIROTEIO

Violência impera nos canais abertos

Festival de homicídios, ofensas e agressões está em todos os horários e não poupa nem as crianças; Globo mostra 471 tiros em dois dias

MARCELO MIGLIACCIO
DA REDAÇÃO

A VIOLÊNCIA está no ar. Nos desenhos animados, nos filmes, nas pegadinhas, nos shows de variedades, nas novelas. Em busca do caminho mais fácil para ampliar a audiência, os canais abertos brasileiros -com escassas exceções, como a TV Cultura e a Rede Brasil- estão seguindo um rumo que nos Estados Unidos já é profundamente questionado pela influência negativa que causaria no comportamento de alguns segmentos da população.
Nos últimos dias 2 e 3, o TV Folha fez um levantamento informal sobre a programação da TV Globo, emissora líder em audiência no país, e constatou que o telespectador é bombardeado por cenas que mostram os mais variados tipos de violência durante as cerca de 22 horas, em média, que o canal permanece no ar diariamente. Das 5h25 de segunda-feira, dia 2, às 3h40 da quarta 4, foram exibidos 22 homicídios explícitos, 1.066 agressões físicas, 921 ofensas verbais, além de terem sido disparados 471 tiros dos mais variados calibres.
O levantamento não contabilizou as cenas violentas exibidas nos programas jornalísticos da emissora nem nos anúncios comerciais. Apenas as cenas contidas nas obras de ficção e nos comercias de programas da própria Globo foram relacionadas.
Embora ainda haja algumas controvérsias a respeito da violência na TV e de suas implicações no comportamento de crianças, jovens e adultos, nos Estados Unidos, onde os índices de crimes cometidos por menores vêm crescendo nas últimas duas décadas, o Congresso americano e várias universidades realizam estudos sobre o tema.
"Nos Estados Unidos, a violência é um problema de saúde pública que se transformou numa epidemia. Precisamos controlá-la. Ninguém está afirmando que a televisão seja a única causa dessa epidemia, mas é, certamente, uma delas", diz o professor de psicologia e pesquisador Leonard Eron, da Universidade de Michigan.
Para a psicóloga Maria Helena Matarazzo, que há dois anos participou de um grupo de discussão em Los Angeles sobre a influência nociva da TV, crianças e jovens que vivem em áreas carentes são especialmente marcados pelo que assistem. "Se a criança mora num bairro violento, vê os pais agindo com brutalidade e assiste a atos de violência na TV, ela faz uma síntese de que o mundo é assim. A única forma de ela aprender que há maneiras alternativas de resolver problemas humanos e sociais seria pela TV", diz.
Maria Helena cita o projeto Midiascope, orçado em US$ 3,3 milhões e implementado pela Associação Nacional de TVs a Cabo e pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), para mostrar a preocupação dos norte-americanos. Durante três anos, 12 mil programas de 25 canais serão analisados. "Eles estão preocupados com a glamourização da violência e com o aumento das agressões gratuitas nos programas, filmes e desenhos animados."
Agressão gratuita é exatamente o que ocorre no desenho "Digimon 2", que a Globo exibe todas as manhãs, dentro do "Bambuluá com Angélica". Não há enredo: um grupo de crianças usa um computador para entrar num mundo repleto de monstros pelo simples prazer de combater as criaturas.
Na segunda-feira passada, uma das personagens infantis do desenho, que nunca havia ido ao tal mundo de monstros, disse às outras: "Mas, eu não gosto de lutar, odeio violência." Ao que outra menina, experiente nas batalhas, respondeu: "Eu... também não gosto, mas depois você vai ter muitas aventuras com os Digimons para contar". Aquela que titubeava, então, topou.
No Japão, pátria dos Digimons e Pokémons (um similar exibido aqui pela TV Record), a responsabilidade penal foi reduzida de 16 para 14 anos em dezembro do ano passado, tal a quantidade de crimes cometidos por crianças e adolescentes. No primeiro semestre de 2000, mil menores foram presos por estupros, assassinatos e atos de violência. Em 99, o número de jovens com idades entre 14 e 19 anos acusados de homicídios se multiplicou por dez.
O psicólogo infantil Alfredo Castro Neto, que há 30 anos trabalha com crianças e adolescentes, diz que "entregar um filho à babá eletrônica é a pior coisa que os pais podem fazer". Segundo ele, entre 5% e 10% das crianças têm dificuldades de controlar seus impulsos e são suscetíveis a programas de TV ou "games" violentos. "Mas, nos games, eles acabam se desinteressando quando conseguem o objetivo; na TV, não, é uma violência contínua, que pode viciar", afirma.
Professor titular de Ciência Política na USP e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da mesma instituição, Paulo Sérgio Pinheiro não está convencido da correlação direta entre violência na TV e comportamento violento, mas acha que a programação abusa do tema. "Não defendo a censura, mas a sociedade civil tem o dever de se mobilizar para fazer prevalecerem normas de conduta, princípios básicos. Não dá pra ficar colocando gente para brigar em programas de auditório", diz, referindo-se ao "Programa do Ratinho", do SBT.
Pinheiro afirma que o governo também tem sua parcela de culpa. "O poder público é omisso em relação ao que os concessionários fazem. Não há nenhuma fiscalização. O Ministério das Comunicações deveria analisar diariamente a programação das emissoras."
A mesma opinião tem o professor de sociologia da USP Laurindo Leal Filho, presidente da organização não-governamental TVer, que analisa a programação televisiva. "As emissoras se movem por interesses políticos e comerciais, deixando de fazer seu papel social."

O PRESIDENTE da ONG TVer, Leal Filho, lembra que a televisão está presente em 87% dos domicílios brasileiros (dados do IBGE, de 1999) e é a única janela que a maioria da população brasileira tem para o mundo.
Siro Darlan, juiz da 1ª Vara da Infância e da Adolescência do Rio, diz que já ouviu inúmeros relatos de adolescentes sobre a inspiração para os crimes que cometeram. "Muitos dizem que viram na TV e acharam fácil fazer."
Neste mês de férias, a Globo optou por exibir à tarde o programa "Você Decide", produzido para o horário noturno, em substituição às novelas que eram veiculadas no "Vale a Pena Ver de Novo". Novelas, por sinal, como "Roque Santeiro", concebida para as 20h e que foi reprisada até a semana retrasada às 14h20.
Na primeira semana do "Você Decide", os episódios mostraram o ódio de um homem por sua sogra, assassinato, ocultação de cadáver, casamento por interesse, tentativa de suicídio e adultério.
Ainda em seu pacote de férias, a emissora líder em audiência programou, às 11h20, cinco seriados. Em "Sheena", uma loura distribui flechadas, socos e pontapés aos que ameaçam a floresta onde vive; "Parceiros da Lei" tem como "heróis" três jovens delinquentes condenados obrigados a ajudar a polícia; o "Homem Invisível" é outro condenado que vira cobaia em experiência; "Arquivo Rosswell" mostra três ETs perseguidos; e "Startgate" aborda o fim do mundo. Boas férias.


Colaborou Fábio Metzger, free-lance para a Folha


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