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TIROTEIO
Violência impera nos canais abertos
Festival de homicídios, ofensas e agressões está em todos os horários e não poupa nem as crianças; Globo mostra 471 tiros em dois dias
MARCELO MIGLIACCIO
DA REDAÇÃO
A VIOLÊNCIA está no ar. Nos desenhos animados, nos filmes, nas pegadinhas, nos shows de variedades, nas
novelas. Em busca do caminho mais fácil
para ampliar a audiência, os canais abertos brasileiros -com escassas exceções,
como a TV Cultura e a Rede Brasil- estão seguindo um rumo que nos Estados
Unidos já é profundamente questionado
pela influência negativa que causaria no
comportamento de alguns segmentos da
população.
Nos últimos dias 2 e 3, o TV Folha fez
um levantamento informal sobre a programação da TV Globo, emissora líder
em audiência no país, e constatou que o
telespectador é bombardeado por cenas
que mostram os mais variados tipos de
violência durante as cerca de 22 horas,
em média, que o canal permanece no ar
diariamente. Das 5h25 de segunda-feira,
dia 2, às 3h40 da quarta 4, foram exibidos
22 homicídios explícitos, 1.066 agressões
físicas, 921 ofensas verbais, além de terem sido disparados 471 tiros dos mais
variados calibres.
O levantamento não contabilizou as
cenas violentas exibidas nos programas
jornalísticos da emissora nem nos anúncios comerciais. Apenas as cenas contidas nas obras de ficção e nos comercias
de programas da própria Globo foram
relacionadas.
Embora ainda haja algumas controvérsias a respeito da violência na TV e de
suas implicações no comportamento de
crianças, jovens e adultos, nos Estados
Unidos, onde os índices de crimes cometidos por menores vêm crescendo nas últimas duas décadas, o Congresso americano e várias universidades realizam estudos sobre o tema.
"Nos Estados Unidos, a violência é um
problema de saúde pública que se transformou numa epidemia. Precisamos
controlá-la. Ninguém está afirmando
que a televisão seja a única causa dessa
epidemia, mas é, certamente, uma delas", diz o professor de psicologia e pesquisador Leonard Eron, da Universidade
de Michigan.
Para a psicóloga Maria Helena Matarazzo, que há dois anos participou de um
grupo de discussão em Los Angeles sobre a influência nociva da TV, crianças e
jovens que vivem em áreas carentes são
especialmente marcados pelo que assistem. "Se a criança mora num bairro violento, vê os pais agindo com brutalidade
e assiste a atos de violência na TV, ela faz
uma síntese de que o mundo é assim. A
única forma de ela aprender que há maneiras alternativas de resolver problemas
humanos e sociais seria pela TV", diz.
Maria Helena cita o projeto Midiascope, orçado em US$ 3,3 milhões e implementado pela Associação Nacional de
TVs a Cabo e pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), para mostrar a preocupação dos norte-americanos. Durante três anos, 12 mil programas
de 25 canais serão analisados. "Eles estão
preocupados com a glamourização da
violência e com o aumento das agressões
gratuitas nos programas, filmes e desenhos animados."
Agressão gratuita é exatamente o que
ocorre no desenho "Digimon 2", que a
Globo exibe todas as manhãs, dentro do
"Bambuluá com Angélica". Não há enredo: um grupo de crianças usa um computador para entrar num mundo repleto
de monstros pelo simples prazer de combater as criaturas.
Na segunda-feira passada, uma das
personagens infantis do desenho, que
nunca havia ido ao tal mundo de monstros, disse às outras: "Mas, eu não gosto
de lutar, odeio violência." Ao que outra
menina, experiente nas batalhas, respondeu: "Eu... também não gosto, mas depois você vai ter muitas aventuras com
os Digimons para contar". Aquela que titubeava, então, topou.
No Japão, pátria dos Digimons e Pokémons (um similar exibido aqui pela TV
Record), a responsabilidade penal foi reduzida de 16 para 14 anos em dezembro
do ano passado, tal a quantidade de crimes cometidos por crianças e adolescentes. No primeiro semestre de 2000, mil
menores foram presos por estupros, assassinatos e atos de violência. Em 99, o
número de jovens com idades entre 14 e
19 anos acusados de homicídios se multiplicou por dez.
O psicólogo infantil Alfredo Castro Neto, que há 30 anos trabalha com crianças
e adolescentes, diz que "entregar um filho à babá eletrônica é a pior coisa que os
pais podem fazer". Segundo ele, entre
5% e 10% das crianças têm dificuldades
de controlar seus impulsos e são suscetíveis a programas de TV ou "games" violentos. "Mas, nos games, eles acabam se
desinteressando quando conseguem o
objetivo; na TV, não, é uma violência
contínua, que pode viciar", afirma.
Professor titular de Ciência Política na
USP e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da mesma instituição,
Paulo Sérgio Pinheiro não está convencido da correlação direta entre violência na
TV e comportamento violento, mas acha
que a programação abusa do tema. "Não
defendo a censura, mas a sociedade civil
tem o dever de se mobilizar para fazer
prevalecerem normas de conduta, princípios básicos. Não dá pra ficar colocando gente para brigar em programas de
auditório", diz, referindo-se ao "Programa do Ratinho", do SBT.
Pinheiro afirma que o governo também tem sua parcela de culpa. "O poder
público é omisso em relação ao que os
concessionários fazem. Não há nenhuma fiscalização. O Ministério das Comunicações deveria analisar diariamente a
programação das emissoras."
A mesma opinião tem o professor de
sociologia da USP Laurindo Leal Filho,
presidente da organização não-governamental TVer, que analisa a programação
televisiva. "As emissoras se movem por
interesses políticos e comerciais, deixando de fazer seu papel social."
O PRESIDENTE da ONG TVer,
Leal Filho, lembra que a televisão está presente em 87% dos domicílios
brasileiros (dados do IBGE, de 1999) e é a
única janela que a maioria da população
brasileira tem para o mundo.
Siro Darlan, juiz da 1ª Vara da Infância
e da Adolescência do Rio, diz que já ouviu inúmeros relatos de adolescentes sobre a inspiração para os crimes que cometeram. "Muitos dizem que viram na
TV e acharam fácil fazer."
Neste mês de férias, a Globo optou por
exibir à tarde o programa "Você Decide", produzido para o horário noturno,
em substituição às novelas que eram veiculadas no "Vale a Pena Ver de Novo".
Novelas, por sinal, como "Roque Santeiro", concebida para as 20h e que foi reprisada até a semana retrasada às 14h20.
Na primeira semana do "Você Decide", os episódios mostraram o ódio de
um homem por sua sogra, assassinato,
ocultação de cadáver, casamento por interesse, tentativa de suicídio e adultério.
Ainda em seu pacote de férias, a emissora líder em audiência programou, às
11h20, cinco seriados. Em "Sheena", uma
loura distribui flechadas, socos e pontapés aos que ameaçam a floresta onde vive; "Parceiros da Lei" tem como "heróis"
três jovens delinquentes condenados
obrigados a ajudar a polícia; o "Homem
Invisível" é outro condenado que vira
cobaia em experiência; "Arquivo Rosswell" mostra três ETs perseguidos; e
"Startgate" aborda o fim do mundo.
Boas férias.
Colaborou Fábio Metzger, free-lance para a Folha
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