São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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CRÍTICA

"Sinto muito, eu faço TV"

EUGÊNIO BUCCI

AGORA é assim: os profissionais de TV pedem desculpas pela TV que fazem. E no entanto fazem. Na semana passada, foi a vez de Alessandra Negrini, em entrevista para o TV Folha. A repórter, Carla Meneghini, perguntou se a atriz fora surpreendida com o grau de violência que a novela "Desejos de Mulher" acabou assumindo. Eis a resposta da atriz: "Eu não me surpreendo com nada da TV, há violência demais. "Desejos" é passível de crítica, sim, mas é o que o público queria ver. O autor foi atrás de ibope. A audiência só subiu quando a novela ficou mais violenta. Então a culpa é da novela ou da sociedade?"
O diálogo que se seguiu merece ser relido:
"Você permitiu que seu filho, de cinco anos, visse a novela?", indagou a entrevistadora.
"Meu filho não assiste televisão."
"Por quê?"
"Porque nós não vemos TV lá em casa."
"Nem um pouco?"
"Nada. Não temos hábito e não sentimos falta. Às vezes, vemos algum documentário do Discovery, os únicos programas que valem a pena. Temos coisas mais interessantes e úteis para fazer, como ler ou conversar. Mas reconheço o valor da TV e acho importante lutar pela qualidade da programação, que está muito ruim."
São palavras dela. Agora, sigamos adiante.
Alessandra Negrini é uma atriz de liquefazer retinas. A sua atuação como a Engraçadinha de Nelson Rodrigues, na série lançada em 1995 e reprisada em 2002, é uma glória da espécie. A sua risada soa como um rito ancestral, as suas coxas amolecem e retesam a respiração da gente, o suor de morte lhe percorre a testa e ilha seus olhos intangíveis. Alessandra justifica sozinha a invenção do televisor. Só por ela, ela e mais ninguém, tudo de bom e de ruim teria valido a pena. E, no entanto, ela quase nos pede desculpas por fazer TV.
Não é a única, por certo. Há outros que entoam lamentos iguais. Eu me lembro de muitos, mas cito aqui apenas mais um. Lima Duarte, numa entrevista ao jornal "Agora São Paulo", de 21 de abril (reportagem de Fábio Eduardo Murakawa, página A-13.): "Eu, particularmente, não suporto, não aguento assistir. E é assim que eu não vejo TV. Como profissional, eu vou lá e tento fazer o melhor possível."
Vivemos, de fato, um período desconcertante. Vários profissionais da TV não suportam ver (e não deixam que seus filhos vejam) os programas que ajudam a pôr no ar. Creio que este é um dos grandes sintomas do mal-estar ético que acomete a televisão brasileira: ela, em grande parte, é realizada por pessoas que não a recomendam para os seus. Não digo que seja esse exatamente o caso de Alessandra e de Lima Duarte, mas há por aí muita gente que desempenha uma função diante das câmeras (ou atrás delas) da qual não se orgulha. Pior, gente que desempenha uma função da qual se envergonha. E, depois, se desculpa. Mais ou menos como o policial que alega, condoído: "Eu apenas cumpria ordens". Ou como o sujeito que trabalha na campanha de um político sabidamente corrupto, editando para ele programas irresistíveis, que farão sucesso no horário eleitoral gratuito, e que não vota no candidato que lhe paga. E que considera esse candidato um parasita do dinheiro público. E que abomina as mentiras eleitorais que veicula para ludibriar o eleitor. Esse sujeito se justifica toda noite, diante do espelho: "Faço isso apenas pelo dinheiro". Como se tivesse o direito de mercadejar com a confiança do público.
Um dos mais graves problemas da televisão no Brasil é que seus realizadores fingem para si mesmos que não têm compromisso moral com o resultado de seu trabalho. No fundo, todos acreditam que é justo ou bom oferecer aos filhos dos outros o que se recusa para os próprios filhos. E lá vamos nós, belos, febris e inimputáveis, como as coxas de Alessandra Negrini.



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