São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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CRÍTICA

Terra em transe

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Padre Marcelo Rossi, fenômeno atual da televisão, no Santuário do Terço Bizantino, em São Paulo


FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Não estava muito disposto a participar das polêmicas em torno do novo galã da fé. A onipresença quase divina do padre Marcelo Rossi na TV nesses dias de festejos torna, no entanto, a tarefa quase inescapável. Não se trata obviamente de reiterar de modo ingênuo que o padre é um veículo da mercantilização da fé. Numa época em que tudo aparece sob a forma de uma imensa coleção de mercadorias, não há porque estranhar que também a fé tenha se rendido ao feitiço. Aliás, como observou a ombudsman deste jornal, Renata Lo Prete, numa de suas colunas dominicais, quem se espanta com o fato de que o Santuário do Templo Bizantino seja patrocinado pela Coca-Cola nunca foi a Aparecida.
A novidade do padre não está aí. Reside antes na extraordinária desenvoltura com que ele transita entre os canais de TV e na sua capacidade também mirabolante de adaptar a mensagem religiosa às formas hegemônicas de entretenimento ligeiro. O padre está por toda a parte praticando a sua aeróbica do senhor: na "Malhação", no Gugu, no Faustão, na Rede Bandeirantes. Ele é, antes de tudo, um grande animador de auditório, e o conteúdo do que diz ou deixa de dizer tem peso muito reduzido diante de seu talento performático. Suas palavras se limitam praticamente à função fática, servem apenas para estabelecer o contato com a massa de fiéis, enquanto a comunicação propriamente dita fica a cargo das coreografias e das musiquinhas inspiradas no repertório dos programas infantis.
O transe leve e descontraído, o fast-food religioso do padre midiático, parece pois bem mais digerível que o tipo de energia coletiva mobilizada por exemplo pela Igreja Universal de Edir Macedo, em que o transe está ligado a uma espécie de enfrentamento com o demônio. Muito já se falou das semelhanças de métodos entre os carismáticos (Rossi) e os neoprotestantes (Edir Macedo), mas, se em ambos os casos a ênfase está na salvação individual e o objetivo parece ser o alívio imediato ou a promessa de felicidade terrena, no caso do padre Marcelo Rossi isso se realiza sem que haja necessidade de provação ou de qualquer atitude introspectiva. Quanto maior a agitação, a confusão epidérmica, a curtição, tanto melhor. É essa a lógica da indústria do entretenimento e, particularmente, a da TV.
Não foi à toa que Xuxa, veterana nessa escola, abriu seu primeiro programa deste ano cantando e coreografando com as paquitas e o auditório um dos hits do padre Rossi. Vestia, ironicamente, uma boina preta com a inscrição "Che" e uma estrela desenhada, alusão óbvia ao maior símbolo da Revolução Cubana, transformado já há algum tempo em artigo de consumo para atender a uma demanda narcisista travestida de inconformismo e rebeldia de shopping center. Estampada na cabeça de Xuxa, a ironia histórica se torna uma homenagem ao cinismo, ainda que involuntário -de onde, aliás, sua graça.
O conjunto da obra -Xuxa, padre Rossi e Che Guevara, irmanados num programa de auditório- é uma espécie de síntese da nova cara brasileira. Não é preciso ser Glauber Rocha para intuir que há algo profundamente errado nessa terra eternamente em transe.


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