São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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O animal que ri

HÉLIO SCHWARTSMAN

OK. EU admito. Já vi e já ri das pegadinhas de Sérgio Mallandro, João Kléber e congêneres. Para os que não conhecem, uma pegadinha é um pouco como uma fraude. Uma câmera oculta grava pessoas em lances embaraçosos. O protagonista, obviamente, não sabe que está sendo filmado e contracena com atores e/ou amigos que o induzem à situação vexatória. Há brincadeiras relativamente inocentes, como a do ator que pede um cigarro a um desconhecido e, ao apanhá-lo, destrói o maço da vítima afirmando que o faz para preservar-lhe a saúde. Normalmente tudo termina, no máximo, com um tabefe. Mas existem também roteiros mais graves. Foi o caso da pegadinha em que se oferecia cocaína a um célebre dependente em processo de recuperação.
Por que rimos de coisas estúpidas como essas? O humor permanece, desde os primórdios, um desafio para filósofos e depois para cientistas. Na verdade, não sabemos por que rimos e muito menos por que rimos de bobagens.
É claro que o riso é um reflexo, mais especificamente uma resposta do sistema nervoso autônomo, no caso, o vago parassimpático, a um estímulo. O problema é que, diferentemente de outros reflexos, o riso não tem um propósito claro como tem, por exemplo, o eriçamento dos pêlos diante de uma ameaça. É um pouco o pesadelo dos neurocientistas. São obrigados a admitir que o riso é importante -ou a evolução não o teria preservado-, mas não sabem explicar por quê.
O riso também é o único reflexo que pode ser disparado por atividades altamente intelectualizadas (neocorticais, diria o neurobiólogo), como a leitura das piadas da "Playboy". Como bem observou o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) em seu saboroso "Le Rire" ("O Riso"), o cômico é essencialmente humano. Mesmo quando rimos de um chapéu engraçado, não estamos rindo do pedaço de feltro ou palha, mas da forma que lhe foi dada pelo "capricho" humano.
O escritor Arthur Koestler, que escreve o verbete "humor" da "Encyclopaedia Britannica", traz outras preciosas indicações. Retomando a discussão sobre a "gramática" do humor, ele afirma que rimos quando percebemos um choque entre dois códigos de regras ou de contextos, todos consistentes, mas excludentes entre si.
Um exemplo: "O masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pelas manhãs e, por isso, toma uma ducha quente". Sei que é um pouco ridículo explicar a piada, mas... Aqui, o fato de o sujeito da anedota ser um masoquista subverte a lógica normal, invertendo-a. Obviamente, a lógica normal não coexiste com seu reverso. Daí a graça da pilhéria. Uma variante no mesmo padrão, mas com dupla inversão é: "O sádico é a pessoa que é gentil com o masoquista". Essa estrutura está presente em todas as piadas. Até no mais infame "trocadalho" que se possa conceber, há um choque entre dois contextos, o do significado da palavra e o de seu som: "A ordem dos tratores não altera o viaduto".
Mas essa "gramática" só dá conta da estrutura intelectual das piadas e há outros aspectos em jogo. Até bebês riem. Há, além do lado intelectual, uma dinâmica emocional no humor. Ele de alguma forma se relaciona com a surpresa. Kant diz que o riso é o resultado da "súbita transformação de uma expectativa tensa em nada" ("Crítica do Juízo", I, 1, 54). Rimos porque nos sentimos aliviados.
Talvez aqui o neurobiólogo possa encontrar uma utilidade para o humor. Ele liberaria tensões. Freud, que também tem um livrinho sobre o humor ("O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente"), acha que gracejos funcionam um pouco como os sonhos. Têm força orgásmica e também revelam impulsos inconscientes.
Na conjunção dos aspectos intelectuais com os emocionais, poderíamos traçar uma escala do humor, dos mais primitivos aos mais sofisticados. Crianças pequenas se deliciam com caretas e imitações. Pré-adolescentes adoram as piadas escatológicas. Adolescentes gostam especialmente de anedotas sexuais.
Há, porém, um outro elemento presente em todos os chistes. É, como observou Bergson, a crueldade. O humor requer alguma insensibilidade. Exige, nas palavras do filósofo, "uma anestesia momentânea do coração". Normalmente não rimos daqueles que nos inspiram piedade. Mas quando o fazemos -e por vezes fazemos- a compaixão é, por alguns instantes, calada.
Nas piadas mais sofisticadas, essa crueldade pode quase desaparecer, mas deixará, ainda, algum traço, na forma de "malícia", "esperteza" ou apenas na suspensão da solidariedade para com a vítima.
Segundo o psicólogo anglo-americano William McDougall (1871-1938), "o riso desenvolveu-se na raça humana como um antídoto contra a compaixão, uma reação protetora que nos defende da influência deprimente dos defeitos de nossos semelhantes". Aqui, os neurobiólogos poderiam procurar uma utilidade mais sofisticada para o humor, embora me pareça fútil fazê-lo.
O que me interessa é retornar a Bergson e ao riso como um "gesto social". Para o filósofo, o temor de tornar-se objeto de riso reprime as excentricidades do indivíduo. O riso não é assim um movimento puramente estético. Ele visa o aperfeiçoamento da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, conserva algo de puramente estético, porque os homens, quando já não se preocupam unicamente com sua sobrevivência individual e do grupo, podem "dar-se como espetáculo aos homens".
As pegadinhas ensejam um humor primitivo, admito. Vou além. Tornamo-nos cruéis ao assistir a uma pegadinha. Mas, à medida que essa crueldade tem um sentido social, ao rir das vítimas não chegamos a sacrificar nossa humanidade. Ao contrário até, nós de alguma forma a afirmamos, já que o homem é, segundo os filósofos, o único animal que ri.
Pegadinhas são cruéis, de mau gosto e, por isso mesmo, engraçadas.



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