São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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CRÍTICA

Nós, o gorila e a máquina budista

Fernando de Barros e Silva

HISTÓRIA que me foi contada por um amigo durante as férias: um zoológico norte-americano queria fazer cruzar um casal de gorilas, tarefa, como se sabe, complicada para muitos animais postos em cativeiro.
Depois de várias tentativas frustradas, surgiu a idéia de driblar a ausência de libido do casal de primatas colocando na jaula uma grande TV, que exibiria um documentário com gorilas copulando na selva, em seu habitat natural. Seria uma maneira de, quem sabe, estimular o apetite sexual dos semelhantes.
Coisa típica de americano, o vídeo pornô dos gorilas não surtiu o efeito desejado. Macho e fêmea não se entusiasmaram diante da engenhoca. A TV, no entanto, provocou alteração inesperada no comportamento do gorila macho. Desligado o documentário pornô, o aparelho de TV permaneceu na jaula durante mais algum tempo. E, diante dele, o gorila, sentado e prostrado, olhando fixamente para a tela vazia, absorvido horas a fio pelas profundezas do nada.
Procurei recuperar pela Internet a história que meu amigo diz ter lido em algum jornal norte-americano, no ano passado. Em vão. Decidi reproduzi-la assim mesmo porque, como diz o ditado italiano, "se non è vera, è ben trovata". Encontrei este amigo, das pessoas mais inteligentes, simpáticas e divertidas que conheço, em meados de janeiro, por acaso, numa praia bastante primitiva do sul da Bahia, como eram Trancoso ou Morro de São Paulo há dez ou 15 anos.
Foi lá que fiquei sabendo do episódio envolvendo nossos ancestrais. Lugar de difícil acesso, que só agora começa a ser descoberto pelos turistas (o nome do paraíso não vem ao caso), à praia não chegavam nem sequer os principais jornais do país, detalhe nada desprezível quando se é jornalista e se está em férias.
Não havia jornais, mas numa das pousadas onde costumávamos comer, debaixo de um grande quiosque redondo feito de palha, ela estava lá: uma imensa TV, que permanecia o dia inteiro ligada. Na Globo, obviamente.
Calhou uma ou outra vez de jantarmos diante de William Bonner e Fátima Bernardes, vendo e ouvindo um dos incontáveis acessos de choro de Ana Paula Arósio em "Terra Nostra" -a garota que guarda seu sorriso para os momentos, também incontáveis, em que nos manda "fazer um 21"-, ou, ainda, assistindo às partidas do campeonato de clubes da Fifa, estas na Band e devidamente boicotadas pela Globo, como se sabe.
O detalhe que vem ao caso, no entanto, é outro. A TV funcionava com antena parabólica e, durante os intervalos comerciais, a tela permanecia a maior parte do tempo negra, sem sinal, idêntica à que cativou o nosso gorila. Com um pouco de exagero retórico, mas bem pouco, posso dizer que o comportamento dos comensais no litoral baiano não diferia muito daquele que se verificou com o macaco. Quase sem exceção, ficávamos às vezes 20 ou 30 pessoas com o olhar fixo diante da TV, como que hipnotizados, à espera da volta do sinal, das imagens, quando a hipnose recomeçaria seu novo ciclo. A estupidez desse comportamento, que também era nosso, virou logo objeto de discussão, o que não nos tornava no entanto menos estúpidos. Todos gorilas, animais dotados de extrema inteligência.
Com a história do gorila e as cenas da Bahia na cabeça, já de volta a São Paulo, fui reler um artigo de Hans Magnus Enzensberger, crítico, ensaísta e poeta alemão, um dos maiores intelectuais e escritores do planeta nas últimas décadas. O texto chama-se "A Mídia Zero, ou Por Que Todas as Críticas Referentes à Televisão São Desprovidas de Sentido". Está incluído no volume de ensaios intitulado "Mediocridade e Loucura", traduzido pela Ática. Publicado em 88, o artigo não chega a ser um dos grandes momentos do autor ("Guerra Civil", editado pela Companhia das Letras, e "Com Raiva e Paciência", pela Paz e Terra, reúnem exemplos do melhor Enzensberger), mas, ainda assim, deixa no chinelo quilos de tolice semiótica e congêneres sobre o assunto.
Marca do autor, o texto leva a ironia ao paroxismo e abusa dos paradoxos para, depois de ridicularizar as reflexões da esquerda -da qual ele próprio faz parte- sobre os malefícios da TV, concluir que o espectador sabe que ela, a TV, "não é um meio de comunicação, mas um meio para a recusa da comunicação", um "método bem definido de agradável lavagem cerebral", que funciona como "higiene pessoal" e "automedicação" -a "única forma universal e amplamente distribuída de psicoterapia". O televisor, diz Enzensberger, "é uma máquina budista", diante da qual a extrema concentração do espectador se confunde e se torna indiferenciável da mais elevada dispersão, ambas reunidas numa espécie de "absorção hipnótica".
Não há dúvida de que a conclusão de Enzensberger é radical, tipicamente alemã -"exagerar é minha profissão", dizia Max Weber. Mas dá muito o que pensar quando observamos a família em estado de nirvana involuntário diante da novela, ou a fúria do adolescente zapeando com o controle remoto na mão. O que, afinal, eles estão vendo?
O gorila tinha algo a nos ensinar quando, em sua catatonia, parecia embevecido pelo nada da TV.


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