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ANÁLISE
TV não compreende o cinema de Glauber
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
A comemoração dos 60
anos do nascimento de
Glauber Rocha na TV evidencia a incompreensão
profunda que existe entre
cinema e televisão no Brasil. À parte a programação
do Canal Brasil -que é especializado em filmes brasileiros-, só a TV Cultura
anuncia eventos especiais
dedicados ao cineasta (em
compensação, não exibe
nenhum de seus filmes).
A TV não leva em conta
que Glauber foi talvez o cineasta que melhor compreendeu a televisão, tendo virado um sucesso quase tão grande quanto Chacrinha, nos tempos em que
fazia um quadro no programa de TV "Abertura".
Era um quadro anárquico, tempestuoso, não desprovido de humor, mas de
um humor tenso, de fricção, de contenda. Glauber
usava e até abusava da
grandiloquência, mas não
uma grandiloquência de
doutor, e sim de visionário, de demente.
Não era claro, como seus
filmes também não eram
claros. Mas a apresentação
paralela desses programas
de TV levados ao ar pela
TV Tupi e de seus filmes
ajudaria a compreender
melhor a natureza de seu
trabalho cinematográfico.
Porque, afinal, não existe
razão alguma para ser claro quando o mundo não se
afigura claro a nós mesmos.
E só sabia abordar o Brasil, sua paixão, num turbilhão de imagens grandiosas, inquietas, surpreendentes.
Talvez seja difícil contextualizar Glauber, hoje em
dia. Sua fama vem do tempo em que Hollywood,
mergulhada numa crise
profunda, não impunha
sua maneira de filmar e
produzir como "a verdadeira", e os filmes eram
atos de guerrilha contra a
ocupação das estéticas oficiais (dos EUA, da URSS).
O público não era consumidor. Era antes um cúmplice dos filmes (não só os
de Glauber, na verdade).
Glauber foi um dos grandes subversivos da linguagem. Distorcia o espaço
conforme sua conveniência. Nas suas mãos, cangaceiros falavam como poetas ("Deus e o Diabo"), os
evangelistas ressurgiam no
Brasil como cavaleiros do
Apocalipse ("A Idade da
Terra"). "Um ovni fílmico, nem mais, nem menos", diria o crítico francês
Serge Daney sobre ele.
Nos estranhos anos 60,
esse ovni ainda podia ser
aceito, ao menos por uma
parte dos espectadores. Já
em meados dos 70, não:
"A Idade da Terra" não só
fracassou no exterior como foi recebido com hostilidade pela esquerda brasileira (Glauber agora apoiava uma facção dos militares no poder, a do general
Golbery do Couto e Silva).
Desde então, Glauber
Rocha tem sido cada vez
menos compreendido. O
que era audácia no tratamento dos espaços, hoje
parece incompetência. Os
delírios grandiosos e poéticos de seus personagens
são assimilados como incapacidade de dialogação
ou qualquer coisa assim.
Não estamos em tempo
de utopias ou profetas.
Glauber é hoje um cadáver
incômodo, que nos lembra
continuamente que o
mundo não é uma bela
imagem publicitária. E as
homenagens a ele estão
nessa balada: são mais
protocolares do que qualquer outra coisa.
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