São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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ANÁLISE

TV não compreende o cinema de Glauber

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A comemoração dos 60 anos do nascimento de Glauber Rocha na TV evidencia a incompreensão profunda que existe entre cinema e televisão no Brasil. À parte a programação do Canal Brasil -que é especializado em filmes brasileiros-, só a TV Cultura anuncia eventos especiais dedicados ao cineasta (em compensação, não exibe nenhum de seus filmes).
A TV não leva em conta que Glauber foi talvez o cineasta que melhor compreendeu a televisão, tendo virado um sucesso quase tão grande quanto Chacrinha, nos tempos em que fazia um quadro no programa de TV "Abertura".
Era um quadro anárquico, tempestuoso, não desprovido de humor, mas de um humor tenso, de fricção, de contenda. Glauber usava e até abusava da grandiloquência, mas não uma grandiloquência de doutor, e sim de visionário, de demente.
Não era claro, como seus filmes também não eram claros. Mas a apresentação paralela desses programas de TV levados ao ar pela TV Tupi e de seus filmes ajudaria a compreender melhor a natureza de seu trabalho cinematográfico.
Porque, afinal, não existe razão alguma para ser claro quando o mundo não se afigura claro a nós mesmos.
E só sabia abordar o Brasil, sua paixão, num turbilhão de imagens grandiosas, inquietas, surpreendentes.
Talvez seja difícil contextualizar Glauber, hoje em dia. Sua fama vem do tempo em que Hollywood, mergulhada numa crise profunda, não impunha sua maneira de filmar e produzir como "a verdadeira", e os filmes eram atos de guerrilha contra a ocupação das estéticas oficiais (dos EUA, da URSS).
O público não era consumidor. Era antes um cúmplice dos filmes (não só os de Glauber, na verdade). Glauber foi um dos grandes subversivos da linguagem. Distorcia o espaço conforme sua conveniência. Nas suas mãos, cangaceiros falavam como poetas ("Deus e o Diabo"), os evangelistas ressurgiam no Brasil como cavaleiros do Apocalipse ("A Idade da Terra"). "Um ovni fílmico, nem mais, nem menos", diria o crítico francês Serge Daney sobre ele.
Nos estranhos anos 60, esse ovni ainda podia ser aceito, ao menos por uma parte dos espectadores. Já em meados dos 70, não: "A Idade da Terra" não só fracassou no exterior como foi recebido com hostilidade pela esquerda brasileira (Glauber agora apoiava uma facção dos militares no poder, a do general Golbery do Couto e Silva).
Desde então, Glauber Rocha tem sido cada vez menos compreendido. O que era audácia no tratamento dos espaços, hoje parece incompetência. Os delírios grandiosos e poéticos de seus personagens são assimilados como incapacidade de dialogação ou qualquer coisa assim.
Não estamos em tempo de utopias ou profetas. Glauber é hoje um cadáver incômodo, que nos lembra continuamente que o mundo não é uma bela imagem publicitária. E as homenagens a ele estão nessa balada: são mais protocolares do que qualquer outra coisa.


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