São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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CRÍTICA

Tempo, tempo, tempo, tempo

EUGÊNIO BUCCI
A NOVELA "O Clone" ainda chama a atenção pela bagunça que promoveu em sua cronologia. Não dá para saber exatamente, mas parece que já se passaram uns 20 anos desde que a história teve início. É isso, ao menos, o que diz a sinopse original da trama, que pode ser consultada pela Internet no site da Rede Globo. Vinte anos? Que 20 anos são esses que não aparecem na cara de ninguém?
Ao longo dessas duas décadas ficcionais, a quantidade de murilos benícios que vemos na tela não se alterou. Todos iguais. Nenhum envelhece. Eram dois murilos no começo, e são dois benícios agora. A diferença é uma só: antes, os dois murilos eram gêmeos e, agora, o benício supostamente mais novo é clone do murilo supostamente mais velho. A confusão toda reside na imutabilidade das feições dos murilos, dos benícios e de quase todos os personagens. Eles são igualmente jovens, ou igualmente velhos, se comparados ao que eram 20 anos antes. Vera Fischer está idêntica. A mãe do clone, Deusa (Adriana Lessa), está idêntica. Nívea Maria está idêntica. Aliás, ela é idêntica desde "A Outra Face de Anita", na TV Excelsior em 1964. É como Tony Ramos, que não está em "O Clone", mas vem bem a calhar. Tony Ramos é igual desde "Nino, o Italianinho". Reconheça-se, porém, que o italianinho, Juca de Oliveira, o Albieri de "O Clone", avançou uns poucos passos rumo a senioridade, mas não envelheceu quase nada como Albieri. As décadas ali não passam para ninguém e, mesmo assim, e aí está o mistério, os telespectadores parecem entender a trama. Como? Aquilo mais parece uma convenção de elencos imortais nos palcos do além, um shangrilá de chorões; como pode haver narrativa se o fio do tempo desaparece?
E, no entanto, pode. E, no entanto, o público nem liga. Ao contrário, farta-se, bêbado, das atemporalidades difusas. A televisão inteira se dedica ao festival das atemporalidades difusas. É curioso notar que o mesmo fenômeno pode ser verificado com personagens não de novelas, mas do "Jornal Nacional". Delfim Netto, admitamos, é o mesmíssimo desde o governo Costa e Silva. Nem os colarinhos são diferentes. Claro, isso é apenas uma anedota e não vem ao caso, mas o fato é que, se é duro acreditar que o tempo passou em "O Clone", muitas vezes é mais difícil ainda crer que o tempo passe no "Jornal Nacional". E isso não apenas em virtude de certas figuras impassíveis, não apenas porque certos personagens teimam em não envelhecer. Trata-se de um traço constitutivo do espetáculo segundo a TV, que presentifica os acontecimentos e os personagens, retirando-os de sua cronologia original.
A televisão parece governada por uma lei geral que despreza e impõe o desprezo ao curso do tempo. O que surge no ar, surge sempre e somente como presente, mesmo quando vem do passado: as memórias são presentificadas; os Beatles irrompem cantando na tela como se sempre tivessem estado ali, ao vivo. Em 30 segundos de fala, o locutor precisa proclamar uma verdade eterna, absoluta. Ela será outra amanhã, é verdade, mas a relatividade do hoje e do amanhã já não cabe na narrativa da TV. Não dá tempo de falar do tempo (a não ser na atemporal previsão do tempo, do tempo a-histórico).
Os discursos que têm lugar na televisão tendem a amputar o presente e o passado da História, seja essa história a trama vã de "O Clone", seja ela a História sangrenta da guerra na Palestina. A passagem do tempo é aquilo que uma atriz extirpa de si com uma plástica, é aquilo que a clonagem pode eliminar para todo o sempre, é aquilo que, se rigorosamente representado, só atrapalharia o sucesso das novelas, é aquilo que complicaria a eficiência simplificadora nos megashows das notícias de guerra. A percepção e o registro do tempo vão deixando de valer neste nosso presente totalitário e inebriante.



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