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CRÍTICA
TV, ficção e realidade
ELIZABETH RONDELLI
SE A LITERATURA tem os seus modos próprios de
brincar com a ficção e a realidade desenvolvidos ao
longo dos séculos, a TV e, antes dela, o cinema tiveram
que criar os seus e adaptá-los ao gosto do público.
A literatura usou as novelas, romances e contos para registrar o que era de natureza mais ficcional. Reservou os romances históricos, as biografias e autobiografias para representar
o real de modo mais direto. O cinema criou o relato ficcional
na forma de dramas, comédias, policiais etc, alertando sempre que semelhanças com a realidade seriam meras coincidências. Mas não deixou de reservar boa parte de sua produção a documentários ou filmes inspirados em fatos reais. Alguns foram sucessos de bilheteria e chegaram a tentar explicações sobre fatos incompreensíveis.
A TV explorou o ficcional e o real em
gêneros bastante distintos que perduraram ao longo desses 50 anos. Para isso, traçou uma linha divisória entre as
suas principais produções: a telenovela e seus congêneres, as séries e seriados, e o telejornal.
Se a telenovela é, supostamente, o espaço da ficção inventada pelos autores
que herdaram suas habilidades do velho folhetim, o telejornal
é o espaço dos fatos reais, cujos formatos derivam dos jornais
e revistas impressos. As programações foram assim construídas e equilibraram ingredientes de fantasia e realidade.
Mas a programação da TV é um continuum a se desenrolar
diante do telespectador, que não se preocupa em separar ficção e realidade nas imagens e narrativas a que assiste. Apenas
aos profissionais das emissoras essa classificação interessa para organizar seus distintos departamentos e suas rotinas de
trabalho.
Nessa teia transmitida, ficção e realidade se misturam. As
telenovelas, embora devam ser vistas como ficção, usam cenários reais, indicadores precisos de tempo e lugar. E buscam
fatos e personagens próximos ao dia-a-dia das cidades, excetuando, é claro, as produções de época. Assim, personagens
se naturalizam, falam e agem de modo verossímil. Criada a
partir de tipos que traduzem comportamentos, atitudes, valores, ética ou a falta dela, a telenovela é menos novela e mais
crônica do nosso tempo. Simboliza e retrata dilemas e conflitos que a sociedade queira discutir. Quem não se lembra de
Odete Roitman e dos problemas éticos que o enredo colhia
nos fatos reais para traduzi-los, em forma de dramaturgia, ao
debate público?
O telejornal, espaço do real e da verdade, encontra nos modos das narrativas ficcionais o seu apelo. Para serem shows de
notícias, como gostam de se apresentar, precisam buscar, no
sensacionalismo, no espetáculo, no drama e no suspense, fórmulas da literatura, do teatro e do cinema, os modos de arrebatar a sua audiência. E o que fazem de mais palatável é contar bem as curiosas histórias
selecionadas da infinidade dos pequenos e repetitivos acontecimentos. O
que narram é um suceder de histórias
parecidas, e o sabor está mais no modo de contá-las do que sobre o que se
conta. Há alguma novidade em rebeliões de presídios, desmoronamentos
nas enchentes, acidentes aéreos ou
marítimos, depois de terem sido tantas vezes narrados? Certamente, há
poucas diferenças entre um episódio e outro, mas sempre haverá um pequeno drama que um repórter ou cinegrafista astuto captará para produzir o seu diferencial narrativo.
Por isso, um dos mais antigos programas jornalísticos da TV
se chama "Fantástico", e uma novela como "O Clone", de Gloria Perez, como tantas outras, trazia relatos de pessoas reais.
No reino desta Scherazade contemporânea, que nos entretém
com suas infindáveis mil e uma noites diante do espectro azulado, ficção e realidade se confundem e se contagiam, pois permanecem coladas uma a outra na sequência da programação.
Elizabeth Rondelli, 50, é antropóloga pela Unicamp, professora de antropologia e sociologia licenciada do Departamento de Métodos e Técnicas de Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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