São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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CRÍTICA

Aplausos no "Jornal Nacional"

EUGÊNIO BUCCI

NA SEGUNDA-FEIRA , o "Jornal Nacional" dedicou sua edição à memória do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, assassinado por traficantes. Foi uma edição arriscada: por pouco, não virou um show lacrimoso. Sobretudo no final, quando William Bonner leu um texto em que fazia de conta que conversava com o morto. Fiquei paralisado de constrangimento: não vai dar certo, pensei. Palavra por palavra, no entanto, o texto foi me convencendo, como se falasse em meu nome. E, de certo modo, falava. Defendia, num tom acima do habitual, o jornalismo, a democracia e os direitos humanos. Parecem expressões vagas, mas são indispensáveis na afirmação de independência do jornalismo. Para mim, soaram como um compromisso autêntico.
Naquela noite, o "Jornal Nacional" me pareceu naturalmente compungido, mas um pouco mais verdadeiro. Falou da falência do poder público. Falou do que todos estamos cansados de saber, vá lá, mas, finalmente, falou. Falou das zonas urbanas que são territórios conflagrados pelo banditismo, onde as autoridades não entram. Falou das favelas e dos pequenos bairros em que o tráfico é, ao mesmo tempo, o poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não esqueçamos que, segundo informações da polícia, Tim Lopes foi preso, julgado sumariamente, condenado à morte e executado pelos traficantes, passando, portanto, por um processo tipicamente estatal. Isso nas palavras do jurista Miguel Reale Jr., atual ministro da Justiça. O próprio ministro admite que há um Estado paralelo instalado no Brasil.
É verdade que foi preciso que um ministro declarasse o caos para que o "JN" se dignasse a mostrar o caos. É verdade, também, que outros telejornais já vinham insistindo no tema há tempos. A novidade, porém, é que agora essa dolorosa discussão atinge o âmago da esfera pública no Brasil. E com ênfase. É um avanço: somente assim, em horário nobre, o descalabro da segurança pública pode ser enfrentado.
O telejornal da Globo também demonstrou, e bem, que nem mesmo os correspondentes de guerra enfrentam tantos riscos de vida como os repórteres que investigam o tráfico na América Latina. Tim Lopes era um destes. Caminhando além do alcance e da proteção da polícia, só conseguia registrar a barbárie usando câmeras ocultas. A Globo se beneficiou enormemente desse recurso de alto risco, e até contribuiu para banalizá-lo. Sim, é um recurso condenável, mas, em situações extremas, em que a ausência do poder público é absoluta, pode ser inevitável. Sem ele, algumas excelentes reportagens de Tim Lopes, como a que mostra a venda drogas aos gritos nas ruas da Rocinha (matéria que lhe rendeu o Prêmio Esso em 2001), não teriam sido possíveis. A vulgarização da câmera oculta é, sem dúvida, um drama ético do telejornalismo no Brasil, mas o desgoverno que a tornou um equipamento necessário ao jornalismo investigativo é a nossa verdadeira tragédia. E o "JN" expôs a ferida.
Por fim, Bonner avisou que, em vez dizer "boa noite", fecharia aquela edição com aplauso. E abriu os braços para começar a bater palmas. Eu gelei, pressentindo o patético. Mas não foi patético. Não era só o apresentador quem aplaudia. Atrás dele, ao fundo, a câmera buscou toda a equipe do programa. Todos, de preto, em pé, batiam palmas. Ao centro, a foto de Tim. Talvez tudo não tenha passado de mais um teatro melodramático da Globo, mas, vendo aquilo, na hora, enxerguei outra coisa: enxerguei jornalistas se levantando, dignos. E acreditei que aqueles profissionais faziam ali um juramento, acima de qualquer outro interesse, de encontrar e mostrar os responsáveis pela falência do Estado e pela impunidade. Naquela noite, naquela única noite, eu, que só vejo defeitos, bati palmas para o "Jornal Nacional". Palmas sinceras. Agora, enquanto escrevo, apenas torço para não me arrepender.


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