São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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CRÍTICA

Entre as bombas e o silêncio

EUGÊNIO BUCCI

SEGUNDA-FEIRA , dia 11 de março. Ansiosos, os telejornais registram o primeiro "meio-aniversário" dos atentados terroristas contra Nova York: há meio ano, há exatos seis meses, as duas torres do World Trade Center eram atingidas pelos aviões de carreira. Agora, as explosões retornam ao horário nobre. Bolas de fogo derretem os edifícios retilíneos, os bombeiros em fila correm para o próprio extermínio, uma avalanche de fuligem varre as esquinas da capital do mundo. As imagens voltam como um recado ameaçador: vivemos sob a égide das duas torres desaparecidas. Elas são as duas pedras fundamentais da novíssima ordem mundial, pedras que se instauram no instante mesmo em que viram pó. Em que desmancham no ar. A televisão as mantém em eterno processo de pulverização e sacralização. Os atentados não estão no passado. Estão no presente. São o presente.
O "meio-aniversário" tem lá sua pirotecnia. Fachos de luz demarcam o espaço antes ocupado pelos dois arranha-céus de concreto. Efeitos especiais funéreos. O luto é solene, excessivo e brega. Em toda parte, autoridades, líderes religiosos e criancinhas tomam parte nas cerimônias, chorando, declamando, rezando. A data proclama que as duas torres seguirão desmoronando sem descanso. Seguirão identificando a face do mal. A televisão em gerúndio retumbante dá significado heróico aos escombros, transforma estilhaços em mártires da liberdade, legitima as novas cruzadas da América. Dá sentido a qualquer acidente, até mesmo ao ar de abdução que habita o semblante de George W. Bush. A lógica do espetáculo militarista é uma intimação compulsória, não deixa brechas, obtura os vazios, fecha todas as saídas. O telespectador não tem por onde fugir.
É então que, à meia-noite de terça-feira, a TV Cultura exibe o "Ensaio" com José Miguel Wisnik. Coisa estranha: aquilo parece acontecer em outro mundo, em outro tempo. O "Ensaio" tem isso de particular: qualquer que seja o músico que ali se apresenta, o programa é sempre um lapso, é sempre uma suspensão da barulheira paranóica que domina a TV. Sem pressa, o convidado canta e conta histórias à medida que recebe orientações ou perguntas de um entrevistador escondido atrás das câmeras e longe dos microfones. Entre uma fala e outra, entre uma canção e outra, o compositor mergulha em silêncios intermitentes para ouvir e encarar o seu entrevistador. Esses silêncios criam vazios. Lembram a pausa musical, mas não se confundem com ela, pois a pausa musical faz cessar o som sem quebrar o compasso e esses vazios têm o poder de quebrar totalmente o ritmo linear dos programas convencionais.
Tais vazios são o oposto da obsessão da guerra e do dinheiro, que é a de abarrotar cada fração de segundo com mensagens abundantes. São pequenos campos de força contra o apetite das armas e da grana, para as quais todo silêncio é prejuízo e tempo perdido. No "Ensaio", as canções são boas e estão a salvo, mas os silêncios são ainda melhores, porque são eles que salvam as canções. São arcos de liberdade.
Há uma certa paz no "Ensaio". Do lado de fora, a TV está em guerra santa. O terrorismo é o espetáculo. Mais que matar inocentes, mais que destruir centros de poder, o terrorismo quer ferir o olhar. É no campo de batalha do olhar que os aviões derrubam o World Trade Center. O telespectador que vê os prédios desabando é um mutilado de guerra: vê o mundo cair, ele que nem sabe levitar, tem amputadas de suas retinas as torres que encarnavam a ordem mundial. Ele não tem rota de fuga, pois também o império americano atira contra o olhar, recruta pelo olhar, reduz as platéias a pelotões imaginários, a ódio compactado. É gozado pensar nisso enquanto Wisnik toca. Ele, sim, escapa à fúria dos pelotões. Pelo que canta, pelo que diz e pelo que silencia. O resto é apenas bombardeio.



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