|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Entre as bombas e o silêncio
EUGÊNIO BUCCI
SEGUNDA-FEIRA , dia 11 de março. Ansiosos, os telejornais registram o primeiro "meio-aniversário" dos
atentados terroristas contra Nova York: há meio ano,
há exatos seis meses, as duas torres do World Trade
Center eram atingidas pelos aviões de carreira. Agora, as explosões retornam ao horário nobre. Bolas de fogo derretem os
edifícios retilíneos, os bombeiros em fila correm para o próprio extermínio, uma avalanche de fuligem varre as esquinas
da capital do mundo. As imagens voltam como um recado
ameaçador: vivemos sob a égide das duas torres desaparecidas. Elas são as duas pedras fundamentais da novíssima ordem
mundial, pedras que se instauram
no instante mesmo em que viram
pó. Em que desmancham no ar. A
televisão as mantém em eterno
processo de pulverização e sacralização. Os atentados não estão no
passado. Estão no presente. São o
presente.
O "meio-aniversário" tem lá sua
pirotecnia. Fachos de luz demarcam o espaço antes ocupado pelos
dois arranha-céus de concreto.
Efeitos especiais funéreos. O luto é
solene, excessivo e brega. Em toda
parte, autoridades, líderes religiosos e criancinhas tomam parte nas cerimônias, chorando, declamando, rezando. A data proclama que as duas torres seguirão desmoronando sem descanso. Seguirão identificando a
face do mal. A televisão em gerúndio retumbante dá significado heróico aos escombros, transforma estilhaços em mártires
da liberdade, legitima as novas cruzadas da América. Dá sentido a qualquer acidente, até mesmo ao ar de abdução que habita o semblante de George W. Bush. A lógica do espetáculo
militarista é uma intimação compulsória, não deixa brechas,
obtura os vazios, fecha todas as saídas. O telespectador não
tem por onde fugir.
É então que, à meia-noite de terça-feira, a TV Cultura exibe
o "Ensaio" com José Miguel Wisnik. Coisa estranha: aquilo
parece acontecer em outro mundo, em outro tempo. O "Ensaio" tem isso de particular: qualquer que seja o músico que
ali se apresenta, o programa é sempre um lapso, é sempre
uma suspensão da barulheira paranóica que domina a TV.
Sem pressa, o convidado canta e conta histórias à medida que
recebe orientações ou perguntas de um entrevistador escondido atrás das câmeras e longe dos microfones. Entre uma fala
e outra, entre uma canção e outra, o compositor mergulha em
silêncios intermitentes para ouvir e encarar o seu entrevistador. Esses silêncios criam vazios. Lembram a pausa musical,
mas não se confundem com ela, pois a pausa musical faz cessar o som sem quebrar o compasso e esses vazios têm o poder de
quebrar totalmente o ritmo linear
dos programas convencionais.
Tais vazios são o oposto da obsessão da guerra e do dinheiro,
que é a de abarrotar cada fração
de segundo com mensagens
abundantes. São pequenos campos de força contra o apetite das
armas e da grana, para as quais todo silêncio é prejuízo e tempo perdido. No "Ensaio", as canções são
boas e estão a salvo, mas os silêncios são ainda melhores, porque
são eles que salvam as canções.
São arcos de liberdade.
Há uma certa paz no "Ensaio". Do lado de fora, a TV está em
guerra santa. O terrorismo é o espetáculo. Mais que matar
inocentes, mais que destruir centros de poder, o terrorismo
quer ferir o olhar. É no campo de batalha do olhar que os
aviões derrubam o World Trade Center. O telespectador que
vê os prédios desabando é um mutilado de guerra: vê o mundo cair, ele que nem sabe levitar, tem amputadas de suas retinas as torres que encarnavam a ordem mundial. Ele não tem
rota de fuga, pois também o império americano atira contra o
olhar, recruta pelo olhar, reduz as platéias a pelotões imaginários, a ódio compactado. É gozado pensar nisso enquanto
Wisnik toca. Ele, sim, escapa à fúria dos pelotões. Pelo que
canta, pelo que diz e pelo que silencia. O resto é apenas bombardeio.
Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo Próximo Texto: Filmes e TV paga Índice
|