São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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CRÍTICA
Fantasias das ninfetas do SBT

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Fantasia", o programinha vespertino do SBT, foi cuidadosamente arquitetado para fazer frente aos conflitos musculares da juventude dourada de "Malhação". Silvio Santos, o camelô mais bem-sucedido do país, juntou numa mesma fórmula o caça-níquel do 0900, as brincadeiras de auditório e o apelo sexual com tintas juvenis.
Os esforços da Globo para espiritualizar um pouco a sua noveleta aeróbica e dar algum traço de humanidade àqueles corpos -que são pura energia sem alma ou luz- podem também ser vistos como uma estratégia da emissora para evitar a comparação entre os programas e assim driblar mais esse coelho mágico saído do baú do Abravanel.
O grande trunfo de "Fantasia", porém, não são a jogatina, as brincadeiras ou mesmo as apresentadoras, entre as quais ex-sem-terra, agora neo-emergente, Débora Rodrigues, fisgada do mato pelas páginas de "Playboy". O trunfo do programa são as suas figurantes, uma legião de ninfetas felizes e sorridentes que dançam, pulam, cantam e se insinuam em trajes minúsculos e coloridos diante das câmeras.
É notório que estão lá para inflamar a imaginação de muito adolescente perdido em casa, com deveres de escola por fazer. E o apelo erótico é tanto mais eficaz na medida em que as meninas são adestradas para temperar malícia e sensualidade com ingenuidade e inocência. Pode ser odioso dizê-lo, mas o programa inspira pensamentos nelsonrodrigueanos, o que torna tudo um tanto constrangedor.
Numa época em que o sexo explícito está à disposição de todos, seu efeito supostamente pornográfico fica como que neutralizado pela banalização da nudez hiperexposta. É nessa medida que a virgindade ambígua das meninas do SBT funciona como as gengivas descritas por Nelson Rodrigues -é altamente pornográfica.
As mocinhas de "Fantasia" desfilam na tela em série, e cada uma delas aproveita os poucos segundos em que aparece em close diante da TV para distribuir beijinhos, chamar o espectador para si com o dedo indicador, solicitar telefonemas e simular suspiros de carinho. Por trás do clima de descontração e da sacanagem de salão, há uma mensagem que à primeira vista passa despercebida.
É como se cada uma dessas ninfetas dissesse "estou aqui, olha para mim, me dê uma chance, eu preciso subir na vida"; ou, invertendo o raciocínio, como se o programa declarasse "não vai dar para todas, alguém vai sobrar nessa brincadeira". Traduzindo em miúdos, trata-se de saber quem será a nova Débora Cristina, quem será a próxima Galisteu, quem será a próxima Xuxa da vida.
A brincadeira assume assim ares de uma roleta-russa às avessas, onde a hipótese de salvação (de alpinismo social, no caso) é ínfima diante da chance de morrer, ou de sucumbir no meio do caminho.
Qualquer semelhança com o espírito desta época não é, evidentemente, mera coincidência, mas nem é preciso divagar tão longe. O mais cruel é que essas meninas dependam apenas da sorte, ou melhor, de um novo Pelé, de um novo Ayrton Senna ou de um convite da "Playboy" para realizar o sonho, com certeza comum a todas, de "virar atriz de verdade" ou, ao menos, de ser objeto de fetiche de um país que parece ter necessidade de viver numa eterna adolescência mental.
Essa aspiração condenada ao fracasso é, no caso, a verdadeira fantasia que o programa do SBT, involuntariamente, alimenta, destrói e descreve tão bem.



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