São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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CRÍTICA

A captura do Lalau

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA

OS RECENTES episódios tornaram patente que Nicolau dos Santos Neto não é um homem lá muito bem informado. Absorvido pelos árduos deveres da magistratura e pelos muitos negócios (nacionais e internacionais) que mantinha, o pobre juiz, nos últimos anos, certamente não deve ter tido muito tempo disponível nem para leituras nem tampouco para acompanhar, naqueles modernos aparelhos de TV que adquiriu para as suas propriedades, a programação das emissoras brasileiras.
Somente isso pode explicar o fato de Nicolau não ter percebido que são poucos os lugares do Brasil em que ainda se pratica a primitiva ação de execração em praça pública. Excetuando uns sítios longínquos, perdidos pelo sertão adentro, a execração hoje continua pública, mas está longe de ser realizada nas praças ou nas portas das delegacias. Execrar, nos dias que correm, é muito mais construir na mídia (o novo espaço público) uma certa imagem do judas do que entregá-lo de algemas nos pulsos -aos apupos, empurrões e olhares da multidão.
Tal transformação, ao que tudo indica, passou ao largo do horizonte de possíveis do ex-juiz, pois, do contrário, ele não teria despendido tanta energia para evitar as algemas, os fotógrafos ou o desagradável confronto com aqueles que ansiosamente o aguardavam. Os telespectadores que puderam acompanhar os telejornais na noite da sua esperada rendição rapidamente se deram conta do quão anacrônicas e inúteis tinham sido as reivindicações do ex-magistrado, visto que as televisões, a despeito dos seus ingênuos cuidados, levaram a termo uma das mais bem realizadas execrações públicas de que se tem notícia, comparável, talvez, à execração dos pedófilos promovida pelas televisões belgas.
A Globo, como é habitual nesses momentos "dramáticos" da vida brasileira, superou-se. É verdade que o âncora da Rede Record, Boris Casoy -o mesmo que, numa entrevista, titubeou diante do fleumático Luis Estevão-, vinha há meses preparando o boneco do linchamento: adotou o cognome de "Lalau" para o foragido, mostrou reiteradas vezes o famoso cartaz de "procura-se", criou bordões e, não contente, passou a terminar o seu telejornal diário com a frase, "Lalau, devolve o nosso dinheiro!".
No dia fatídico, no entanto, a emissora carioca, sempre muito hábil em obter e editar imagens, não deixou espaço para comentários cáusticos ou cobranças incisivas. A ocasião era simplesmente de execração midiática, e, nesse terreno, ninguém supera o jornalismo "global".
Prova disso foi o "Jornal da Globo" daquela movimentada noite. Em meio a centenas de entradas inúteis do seu repórter, plantado na porta da delegacia, sem nada para dizer ao telespectador a não ser o óbvio, o jornal pôs em movimento um modo de apresentação das imagens que parecia norteado por uma estranha interpretação do princípio de "acirramento da luta de classes".
O espetáculo teve, pelo menos, dois pontos altos. O primeiro foi um "remake". A emissora lançou mão, mais uma vez, da já célebre reportagem que Caco Barcellos realizara em Miami, aquela sobre o luxuoso apartamento que o ex-magistrado mantinha no paraíso dos corruptos "emergentes" da América Latina. Para quem não se lembra, na tal reportagem, enquanto a câmera percorre os inúmeros luxos ostentados por Nicolau, o narrador sugere sutilmente ao telespectador que todo aquele exagero é sustentado com a desgraça do seu país, talvez mesmo com o dinheiro que melhoraria a escola dos seus filhos, o posto de saúde que o atende ou o sistema de transportes públicos que utiliza.
A indignação do lesado é provocada a tal ponto que, no encerramento do bloco, é quase aliviado que ele assiste à apresentação do segundo ponto alto da noite, uma pérola do linchamento televisivo: Nicolau, sem camisa, barriga saliente, copo de caipirinha na mão, aparece à beira de uma piscina; ao fundo, ouvem-se as vaias de uma multidão, seguida do coro "ladrão, ladrão, ladrão".
A "vinheta" retornou em todos os intervalos do jornal, atuando como uma espécie de vingança para os milhares de brasileiros que, enjoados, ouviam, no decorrer dos blocos, as mil e uma tramóias do famigerado caso do Tribunal Trabalhista. Os que, estoicamente, resistiram a tudo até o final receberam como brinde a única imagem "atual" do ex-foragido (obtida, através de uma janela, por um cinegrafista que teve direito a ver o seu nome citado): de olhos esbugalhados, uns quantos quilos mais magro, o ex-juiz, para deleite de todos, parecia assustado.
É extremamente difícil avaliar que impactos esse gênero de execração televisiva tem sobre a população. Talvez o país careça mesmo da construção desses "casos exemplares" que, ao gênero dos romances realistas de Aluísio de Azevedo, servem para educar mostrando as trágicas consequências das más ações. Azevedo, no entanto, apesar de toda a ingenuidade do seu moralismo, parece ater-se mais à crítica dos princípios deletérios que regem as más ações do que à condenação histérica daqueles que agem mal. Lição que os arquitetos da execração televisiva que se viu na noite da captura do ex-juiz estão por apreender.


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