São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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CRÍTICA

A MTV no mercado dos prazeres

Divulgação
Ana Bárbara Xavier, a apresentadora Babi, do programa "Erótica", da MTV


FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

O "Erótica", esse ótimo programa exibido pela MTV às quartas-feiras, às 22h, é quase revolucionário para os padrões da TV brasileira. Mas também parece estar abrindo uma porta já escancarada pela nossa época. Não é muito simples explicar a contradição em que está enredado. Vamos por partes.
Num ambiente basicamente conservador, em que o sexo ainda é cercado de interdições ou serve de alimento à indústria da pornografia (uma coisa, aliás, não vai sem a outra, são verso e reverso da mesma moeda), o programa da MTV vem desanuviar horizontes. É um programa que joga a favor de uma mentalidade esclarecida, da tolerância e do respeito à diversidade (ainda que numa esfera restrita).
O "Erótica" parece disposto a investigar tudo, a esclarecer tudo, a falar de tudo -e tudo da maneira mais franca, "natural" e desimpedida possível. Tabus e preconceitos, aqui, são sinônimo de obscurantismo e devem ser banidos como algo indesejável.
Para os que não conhecem, vale um breve resumo de como funciona o "Erótica". O cenário é uma mistura de quarto de motel com consultório médico ou psicanalítico. Há uma cama redonda, onde fica sentada em trajes e postura descontraídos a apresentadora Ana Bárbara Xavier, ou Babi, e uma poltrona a seu lado, onde se senta o médico Jairo Bouer. Tudo é muito vivo, repleto de almofadas coloridas, paredes estampadas, sugerindo um ambiente meio anos 70, carnavalizado, sem "grilos".
O programa é ao vivo. Na maior parte do tempo recebe e responde perguntas por telefone ou por e-mail, algumas poucas por cartas pré-selecionadas. A linguagem é a dos adolescentes -os apresentadores informam que o programa "já tá rolando", que serão lidas as mensagens "mais legais" e que "a galerinha" tal está presente no auditório.
Há sempre alguma reportagem sobre curiosidades sexuais e um convidado especial que também entra na ciranda do sexo verbal. "Tirar as dúvidas" é a frase-chave do "Erótica".
Alguns exemplos levados ao ar: Uma carta pergunta: "Meu namorado gosta que eu mije e cague em cima de seu peito. Isso é normal? Ele já bebeu várias vezes minha urina. Isso é normal?" Esbanjando segurança e naturalidade incomuns, sempre simpática, Babi comenta: "Não tem nada melhor pra fazer, não, gente?" Nada de espanto excessivo, de reação escandalizada, nenhum mal-estar no ar. Jairo Bouer acrescenta: "Cada pessoa e cada casal têm as suas fantasias para apimentar suas relações sexuais. Essa é uma pimenta forte, um tempero forte demais. O mais importante é que nenhum dos parceiros fique incomodado, é que as pessoas curtam a relação. O sexo deve ser uma conversa permanente". Seguem- se então breves explicações científicas sobre a coprofagia.
Outro exemplo: Um garoto ao telefone que se define como gay afirma que transa com o parceiro todas as noites, mas que isso não o satisfaz e que se masturba seis ou sete vezes por dia. É normal? A resposta de Jairo: "Cada um tem o seu ritmo sexual. Varia de pessoa para pessoa. Mas se isso for uma coisa compulsiva, se estiver incomodando e atrapalhando o seu dia-a-dia, é bom procurar um especialista". E Babi: "Em sexo, a coisa só não fica saudável se tiver atrapalhando o seu ritmo de vida".
Citei, de propósito, dois casos inusuais ou extremos. Não há dúvida de que todo esse esforço didático-compreensivo para desmistificar tais assuntos é uma novidade muito bem-vinda na TV.
Mas há armadilhas - e contradições- nesse falatório esclarecido. Desde Freud, e progressivamente ao longo do século, a diversidade sexual vem deixando de ser encarada como mera perversão, embora muitos segmentos sociais ainda não a aceitem nem a tolerem, para ser incorporada mais e mais à vida cotidiana das sociedades ocidentais.
Essa legitimação das diferenças sexuais, ou, para falar como o sociólogo inglês Anthony Guiddens (em seu livro "A Transformação da Intimidade"), essa democratização radical da vida pessoal foi construída sobre os escombros do ideal de amor romântico e da moral cristã. Só uma sociedade que separou o sexo do fardo da função reprodutiva e que dissociou radicalmente o sexo do amor pode tratá-lo de maneira "científica" e tão diretamente em termos de prazer ou de gratificação pessoal.
"A coisa só não fica saudável se atrapalhar o seu ritmo de vida", nos lembra a poderosa Babi. O "Erótica" é mais um sintoma da vitória do individualismo contemporâneo, estritamente pragmático. A liberação sexual que o programa, enfim, ajuda a promover nada tem mais a ver nem se mistura com a luta política pela emancipação coletiva de que tanto se ocuparam pensadores radicais com Reich e Marcuse.
Nunca, como hoje, foi tão verdadeira a imagem batida de que há lugar para todos no "mercado dos prazeres".


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