São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

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CRÍTICA

O lelê

EUGÊNIO BUCCI

"NOITE Afora" é um programa que avança madrugada adentro. Entra no ar por volta da meia-noite, ou da uma, às vezes só lá pelas duas da manhã, como aconteceu na segunda-feira passada. Encenado sobre uma cama vasta e cor-de-rosa, apresentado por uma Monique Evans risonha e ruidosa, o programa da Rede TV! recebe convidados que vão de escritores a inventores, de jovens atrizes a modelos antigas, invariavelmente para falar de sexo. Sexo, sexo, sexo. E invariavelmente com deboche. Monique Evans gargalha conforme as atrações quase explícitas desfilam por sua cama. Seus convidados clamam por sussurros, olhares nublados, lentos enlevos de corpo, e ela, indiferente, mostra-se imbuída de uma euforia elétrica, nada erótica. É engraçado vê-la tão ágil e saltitante ainda que sentada sobre uma cama. Há entre ela e seus convidados uma desafinação áspera. Ela tem ares de monitora de festa infantil, e eles vêm carregados daquele desejo pesado, cavernoso e bruto, nada requintado. Em "Noite Afora" o desejo é feio e a fala é de um nervosismo mal disfarçado. Seria uma fala histérica? Talvez sim, talvez não. À frente de sua alcova superiluminada, a apresentadora diz que seu programa é bom para quem quer dar risada. Então, "Noite Afora" é um humorístico.
Que humor estranho aquele lá. Parece indicar, mais que uma intenção jocosa, a dificuldade extrema que cerca o assunto, a saber, o sexo. O "humor" serve então de salvo-conduto moral. Transformando o assunto numa brincadeirinha de moleques, Monique Evans obtém licença para discursar sobre as partes pudendas sem delas se "sujar". Como se não tivesse envolvimento algum. Como se delas não quisesse sorver o gosto. Assim, o "humor" serve para impor uma distância: "Eu rio disso porque não desejo isso". Nesse seu distanciamento estranho, Monique lembra as apresentadoras dos programas ditos femininos que, todas as tardes, falam de culinária sem jamais lambuzar as mãos naqueles temperos todos. Está na cara que essas apresentadoras, ou quase todas elas, detestam a convivência com o fogão e com a pia, assim como abominam picar cebola, manusear a carne crua, acender um forno. Elas falam dessas coisas por demagogia, por acreditar que, assim, cativam a audiência, falam sem comprometimento, como Monique Evans fala de sexo. Monique, porém, não fala de sexo por demagogia: diz ela que fala para dar risada.
Esse "humor" que não é humor, pois o humor quer ferir e desmascarar (a comédia humana) enquanto esse "humor" quer esconder e proteger (a apresentadora), tem a característica de infantilizar o sexo, neutralizando-o. Incrível como se pode infantilizar tudo, até mesmo a pornografia. A pornografia contemporânea gira em torno do falo, é falocêntrica, tem o falo como um totem, uma divindade inabalável, onipotente, plenipotenciária, matadora. Nos vídeos pornográficos, as atrizes giram em torno do falo como as mariposas giram em volta da "lâmpida" no samba de Adoniran Barbosa. A pornografia contemporânea é rude, por certo, mas é ainda pornografia. Pois em "Noite Afora", Monique Evans emascula a pornografia. Ela lobotomiza o falo, chamando-o de nomes limítrofes como, entre outros, "lelê". Essa é boa. "Lelê", no dicionário, quer dizer confusão. Em "Noite Afora", o "lelê" é a confusão imaginária entre o bonde do desejo que se veste de trenzinho fantasma e os trilhos da repressão que se vestem de criança.
Não por acaso, Monique Evans, com seu riso bonito de criança, exerce uma autoridade castradora. Como tantos outros entrevistadores da TV, aqueles que, além de perguntar, também se ocupam em responder as próprias perguntas, ela discursa como quem conhece tudo e não deseja nada. Ela e sua alegria enérgica não desejam nada, nada. Noite adentro, o telespectador é só abandono.



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