São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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CRÍTICA

O ateísmo como direito

EUGÊNIO BUCCI

HÁ DUAS semanas, critiquei os jogadores da seleção que fizeram merchandising religioso logo após a vitória sobre a Alemanha. Argumentei que, ao "desvestirem" o uniforme oficial para revelar outra camiseta, que traziam por baixo, com slogans de uma causa religiosa, eles se aproveitaram da visibilidade pública conquistada pelo time nacional para promover convicções particulares. O que é indevido e invasivo. O Brasil é um Estado laico: nenhuma função de representação do Brasil pode ser apropriada por uma forma de fé. Não é democrático. Mesmo que essa fé congregue 99% da população, não é democrático. A minoria não pode ser excluída nesses momentos de representação nacional. Quando transformaram a festa do pentacampeonato num evento de divulgação de culto qualquer, esses jogadores usurparam a camisa oficial que trajavam. Ato contínuo, excluíram das comemorações os brasileiros que não partilham do mesmo culto.
Como era de esperar, recebi mensagens de protesto. Na verdade, nem foram tantas. Não mais que 30. O que me chamou a atenção foi que 90% delas vinham de leitores verdadeiramente indignados. Eram textos violentos que, em resumo, acusavam-me de preconceituoso. Em respeito aos que me escreveram, aos quais sou grato, em respeito ao conjunto dos leitores e, finalmente, às opções espirituais de cada um, volto ao assunto. O meu objetivo é deixar claro que não é preconceito o que me move. Minha crítica não é contra religião nenhuma: é contra o marketing oportunista de religiões que vem se repetindo na TV.
A fé, todos sabemos, deixou de ser "uma questão de opção de foro íntimo", como se dizia antigamente, e passou a ser um segmento da indústria cultural. Não se trata de um fenômeno "evangélico" ou "católico" ou "protestante": as seitas eletrônicas têm raízes nas mais diversas tradições místicas; o que as distingue não é a tradição a que se filiam, mas sua prática discursiva, perfeitamente adaptada ao show de TV. A Rede Record é uma expressão desse fenômeno no Brasil. Padre Marcelo, com as suas especificidades, também é. A fé se tornou uma modalidade do espetáculo, com as vantagens e desvantagens de comunicação (sagrada ou profana) que isso acarreta.
As teleigrejas se manifestam (e existem) como propagandas de si mesmas. Para elas, a propaganda não é a alma do negócio: a propaganda é sua razão de ser. É de sua natureza a propensão a ocupar todos campos da visão social. Acreditam que, assim, cumprem seu papel e exercem seu direito. Muitas vezes, porém, invadem o direito de outros e seus fiéis mal se dão conta. Um atleta que se declara diante das câmeras como alguém que "pertence a Jesus" está apenas exercendo o direito de professar sua fé. Mas, quando ele se furta à representação oficial da qual foi incumbido, a de vestir o uniforme da seleção brasileira, num evento oficial, e se aproveita das câmeras para promover um determinado culto, comete um abuso. E exclui, com esse gesto, os outros brasileiros que porventura não comunguem da mesma fé. Mesmo sem querer.
Vivemos uma era de multiplicação de teleigrejas. Deveriam ser tempos mais plurais, mais arejados, mas não são. Ao contrário, são tempos de intolerância. A fé que só existe como espetáculo supõe-se um sentimento total e não admite contestação. A simples idéia de que não há unanimidades nem Maomé, nem Buda, nem mesmo Cristo é entendida como uma hedionda heresia pelas teleigrejas. A mera existência de um ateu se torna uma ofensa. Apenas para efeitos de raciocínio, imagino a seguinte cena: após a vitória do Brasil sobre a Alemanha, um jogador abre um estandarte onde se lê "Viva o ateísmo!". Provavelmente seria expulso de campo. E, no entanto, não estaria cometendo uma deselegância pior do que essa que foi cometida pelos propagandistas de Jesus.



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