São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

A TV para os analfabetos

Alcino Leite Neto

NUM FILME fundamental, "Mulheres Diabólicas", o diretor Claude Chabrol realiza uma crítica clara e dura ao modo como a televisão se associa a mecanismos de ressentimento e alienação. Uma empregada doméstica francesa que esconde obsessivamente seu analfabetismo só encontra conforto às aflições diante do aparelho de TV.
O filme, de 1995, na época espantou a crítica européia por dois motivos. Primeiro, porque apresentava uma personagem analfabeta na república iluminista da França. Segundo, porque Chabrol fazia, à sua maneira, uma leitura imprevisível da famosa "luta de classes" -como se o conceito não tivesse sido desacreditado.
Assim, enquanto a empregada trancava-se em seu refúgio no sótão da mansão para ver programas de auditório, a família burguesa reunia-se na sala elegante para assistir a vídeos de ópera. Os entretenimentos variavam, mas ambos mergulhavam as diferentes classes em igual isolamento e cegueira social. Não seria diferente, hoje, com o home theater.
Como se trata de uma história de crime e violência, tudo acaba em tragédia no filme. A catarse derradeira, no entanto, não ofusca o poderoso esboço político de Chabrol, que nem sequer é marxista.
"Mulheres Diabólicas" (no original "La Cérémonie", disponível em vídeo) deveria fazer parte do currículo das escolas de comunicação e sociologia no Brasil. Sobretudo por tocar nesta relação frequentemente menosprezada nas análises sobre a TV: a relação desse meio com o analfabetismo.
Para que tudo fique mais concreto, vamos aos números brasileiros. Segundo o IBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (dados de 98), existem 15 milhões de analfabetos no país com idade acima de 15 anos. Em termos percentuais, isso significa que 13,8% da população não distingue "a" de "b". Pior é o índice do chamado "analfabetismo funcional": 30,5% dos que têm mais de 15 anos cursaram menos de quatro anos de estudo e dominam apenas rudimentos da escrita e da leitura.
Essa catástrofe, que é nossa, é também uma espécie de sintoma agudo de um conjunto de mudanças no plano mundial, quais sejam: (a) a desistência quanto ao projeto de educação literário-humanista de todo o gênero humano; (b) o aumento da segregação social, baseada agora no acesso restritivo ao conhecimento e aos meios de informação -por outro lado: o acesso mercantil irrestrito aos de entretenimento-; e (c) a dominância da televisão sobre todas as mídias como "ambiente" privilegiado de compartilhamento midiático da população analfabeta.
Uma das aspirações essenciais da cultura humanista era a alfabetização universal. Por meio dela, todos os homens poderiam ser reunidos num espaço abstrato comum (a humanidade ilustrada), cujos valores de justiça, liberdade e equidade seriam transmitidos pelos livros e os saberes.
Esta utopia já não existe. Assim como deixamos de crer em valores comuns transcendentes, não acreditamos mais na leitura como fundamento civilizatório. A escrita passa por evidente expansão graças à Internet, mas no mundo virtual ela tem função oposta à que tinha no humanismo -atende às trocas informativas de uma sociedade fragmentada.
Apesar disso, a rede mundial de computadores é uma garantia para os que dela usufruem de associação a um universo de comunicação formalmente unificado. Mais do que isso: ela permite o domínio, hoje, sobre uma parte do sistema produtivo.
Por isso, a alfabetização eletrônica é cavalo de batalha de humanistas recalcitrantes. Os melhores dentre eles defendem a democratização do acesso à Internet não como forma de agregação transcendental dos homens, mas a fim de evitar a segregação social superior que se configura entre os que compartilham a Web e os que não.
Ajunte-se o analfabetismo digital ao analfabetismo propriamente dito e estamos num mundo em que uma superelite magnifica seu domínio sobre os meios de produção e comunicação. Combater esse quadro pessimista exige, portanto, o redobrado esforço de vencer dois analfabetismos de uma vez só.
É mais provável que isso não ocorra e que milhões, ou bilhões, permaneçam chafurdando cada vez mais fundo na obscuridade. Para esses, a TV poderia ser um meio essencial de auto-espelhamento e transmissão de valores.
Não é impensável, nem condenável, um futuro em que parte das pessoas desse mundo, tendo sido elas marginalizadas da linguagem escrita e informacional, passem a utilizar a linguagem televisiva para forjarem sua cultura.
A TV poderia até mesmo se transformar em instrumento de desalienação e mídia alternativa contra a classe dominante pós-letrada. Isso, se as emissoras já não estivessem sob o controle de gigantescos oligopólios e, no Brasil, de políticos do interior -os novos coronéis eletrônicos.
A ambos só interessa conter a violência advinda do ressentimento que resulta da marginalidade com a ajuda de espetáculos midiáticos de conciliação. Estes liberam cada vez maiores doses de brutalidade, atendendo ao sentimento desagregador, para depois aplicarem como ideologia as vantagens da irmanação no mercado audiovisual.


Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: A casa dos nossos sonhos
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.