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CRÍTICA
A TV para os analfabetos
Alcino Leite Neto
NUM FILME fundamental, "Mulheres Diabólicas", o diretor Claude Chabrol realiza uma crítica clara e dura ao modo como a televisão se associa a mecanismos de ressentimento e alienação. Uma empregada doméstica francesa que esconde
obsessivamente seu analfabetismo só encontra conforto
às aflições diante do aparelho de TV.
O filme, de 1995, na época espantou a crítica européia
por dois motivos. Primeiro, porque apresentava uma
personagem analfabeta na república iluminista da França. Segundo, porque Chabrol fazia, à sua
maneira, uma leitura imprevisível da famosa "luta de classes" -como se o conceito não tivesse sido desacreditado.
Assim, enquanto a empregada trancava-se em seu refúgio no sótão da mansão
para ver programas de auditório, a família burguesa reunia-se na sala elegante
para assistir a vídeos de ópera. Os entretenimentos variavam, mas ambos mergulhavam as diferentes classes em igual
isolamento e cegueira social. Não seria
diferente, hoje, com o home theater.
Como se trata de uma história de crime
e violência, tudo acaba em tragédia no
filme. A catarse derradeira, no entanto,
não ofusca o poderoso esboço político de
Chabrol, que nem sequer é marxista.
"Mulheres Diabólicas" (no original "La
Cérémonie", disponível em vídeo) deveria fazer parte do currículo das escolas de
comunicação e sociologia no Brasil. Sobretudo por tocar nesta relação frequentemente menosprezada nas análises sobre a TV: a relação desse meio com
o analfabetismo.
Para que tudo fique mais concreto, vamos aos números
brasileiros. Segundo o IBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (dados de 98), existem 15
milhões de analfabetos no país com idade acima de 15
anos. Em termos percentuais, isso significa que 13,8% da
população não distingue "a" de "b". Pior é o índice do
chamado "analfabetismo funcional": 30,5% dos que têm
mais de 15 anos cursaram menos de quatro anos de estudo e dominam apenas rudimentos da escrita e da leitura.
Essa catástrofe, que é nossa, é também uma espécie de
sintoma agudo de um conjunto de mudanças no plano
mundial, quais sejam: (a) a desistência quanto ao projeto
de educação literário-humanista de todo o gênero humano; (b) o aumento da segregação social, baseada agora no
acesso restritivo ao conhecimento e aos meios de informação -por outro lado: o acesso mercantil irrestrito aos
de entretenimento-; e (c) a dominância da televisão sobre todas as mídias como "ambiente" privilegiado de
compartilhamento midiático da população analfabeta.
Uma das aspirações essenciais da cultura humanista era
a alfabetização universal. Por meio dela, todos os homens
poderiam ser reunidos num espaço abstrato comum (a
humanidade ilustrada), cujos valores de justiça, liberdade
e equidade seriam transmitidos pelos livros e os saberes.
Esta utopia já não existe. Assim como deixamos de crer
em valores comuns transcendentes, não acreditamos
mais na leitura como fundamento civilizatório. A escrita
passa por evidente expansão graças à Internet, mas no
mundo virtual ela tem função oposta à que tinha no humanismo -atende às trocas informativas de uma sociedade fragmentada.
Apesar disso, a rede mundial de
computadores é uma garantia para os
que dela usufruem de associação a um
universo de comunicação formalmente unificado. Mais do que isso: ela
permite o domínio, hoje, sobre uma
parte do sistema produtivo.
Por isso, a alfabetização eletrônica é
cavalo de batalha de humanistas recalcitrantes. Os melhores dentre eles defendem a democratização do acesso à
Internet não como forma de agregação transcendental dos homens, mas a
fim de evitar a segregação social superior que se configura entre os que
compartilham a Web e os que não.
Ajunte-se o analfabetismo digital ao
analfabetismo propriamente dito e estamos num mundo em que uma superelite magnifica seu domínio sobre os
meios de produção e comunicação. Combater esse quadro pessimista exige, portanto, o redobrado esforço de
vencer dois analfabetismos de uma vez só.
É mais provável que isso não ocorra e que milhões, ou
bilhões, permaneçam chafurdando cada vez mais fundo
na obscuridade. Para esses, a TV poderia ser um meio essencial de auto-espelhamento e transmissão de valores.
Não é impensável, nem condenável, um futuro em que
parte das pessoas desse mundo, tendo sido elas marginalizadas da linguagem escrita e informacional, passem a
utilizar a linguagem televisiva para forjarem sua cultura.
A TV poderia até mesmo se transformar em instrumento de desalienação e mídia alternativa contra a classe dominante pós-letrada. Isso, se as emissoras já não estivessem sob o controle de gigantescos oligopólios e, no Brasil,
de políticos do interior -os novos coronéis eletrônicos.
A ambos só interessa conter a violência advinda do ressentimento que resulta da marginalidade com a ajuda de
espetáculos midiáticos de conciliação. Estes liberam cada
vez maiores doses de brutalidade, atendendo ao sentimento desagregador, para depois aplicarem como ideologia as vantagens da irmanação no mercado audiovisual.
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