São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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CRÍTICA

O melodrama e a gente

EUGÊNIO BUCCI

ÀS VEZES ainda se ouve por aí alguém dizendo que sexo sem amor não dá. Soa um tanto ingênua a alegação, meio fora de tempo, como um simca chambord atrasando o tráfego. Amor, o que é isso? Coisa mais anos 50...
Pobre palavra essa, amor. Palavra vã. O que se quer dizer, quase sempre, não é que sexo precisa de amor, mas que sexo precisa de narrativa. O amor entrou aí porque é uma narrativa. É a narrativa mais convencional de todas, com a vantagem de ser do tipo "dois em um": funciona como um salvo-conduto contra a repressão interior (autoriza o ato em si) e funciona como historinha com começo, meio e final feliz (alma gêmea, príncipe, sapo etc.); dá um sentido ao desejo sem razão. Se visto como o que é, uma narrativa, o amor não passa de uma perversão sexual como qualquer outra. Um pouco repetitiva demais, talvez, mas não importa. O amor segue sendo bastante popular.
Sua popularidade se encontra na raiz do secular sucesso do melodrama. Fez a glória dos folhetins nos jornais do século 19 e, depois, das radionovelas e telenovelas. Isso sem falar nos filmes, nas canções gementes, nos romances (os bons, inclusive) e nos poemas fáceis (alguns deles até bonitos). O melodrama, do mais requintado ao mais elementar, cumpre uma missão sagrada, que é a de nos dar a narrativa nossa de cada dia. A narrativa dentro da qual a gente vive imaginariamente. A comunicação amorosa seria impraticável sem a consolidação linguística realizada pelo melodrama de massa. É ele quem dita a entonação e sequência das palavras, bem como os trejeitos e os gestos que se aplicam à corte adotada no acasalamento entre os humanos.
O encanto das novelas está precisamente nisso. Não está nos lábios molhados e, vá lá, arfantes da mocinha, nem nas piruetas a dois sob lençóis de cetim. Nada disso. O encanto da novela está onde sempre esteve, na sua narrativa e no uso imaginário a que ela se presta. Ela fornece fórmulas para as muitas soluções que o desejo nos pede no cotidiano: desrepressão, sublimação, denegação, o que se queira. E isso de um modo tal que a(o) outra(o) nos entende. As novelas são o que são porque dão a narrativa da vida íntima do brasileiro.
E daí? Qual a razão de tantas considerações acerca de tanto amor? Já me explico. Tudo isso até aqui foi escrito a propósito dos "reality shows" que agora nos cercam, latindo, por todos os lados, por todos os canais e por todos os canis. Tudo isso foi dito como preâmbulo de duas, e apenas duas, observações.
A primeira: que esses "reality shows" vêm para esbanjar algo que o melodrama não consegue proporcionar, a saber, os corpos supostamente reais, no limiar do desgoverno, a carne-verdade. Prometem escancarar, com sua fidedignidade documental, o instante exato em que a fraqueza se torna a mais massacrante das forças e o sujeito sucumbe ao pecado. O convite para ver tal espetáculo, convenhamos, é tentador. Daí que a gente vê, fica vendo, e depois vai ver de novo, outros excessos virão, até que, você pode apostar, virá o cansaço. Lentamente, ele virá. Tanta oferta de carne tenderá à saturação, exatamente como as tabelas de preços são saturadas de números e as listas telefônicas são saturadas de nomes próprios.
Donde chegamos à segunda observação: os "reality shows" vão se saturar porque a eles sobra gente "real" dentro da jaula, mas a eles falta narrativa. Eles têm os corpos, mas não têm sentido narrativo, sentido nenhum a não ser aquelas gincanas ridículas. Não têm sentido dramático, ou melhor, melodramático. Aí alguém vai dizer, de novo: sexo sem amor não dá. Será lacônico.
Na vida real, real mesmo, no duro, a gente até gosta de pornografia, mas não vive sem melodrama. Político, religioso, amoroso. Algo que nos diga que a gente faz algum sentido neste mundo-cão. É uma miséria medonha, mas é o que é.


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