São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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CRÍTICA

Adeus à praça pública

EUGÊNIO BUCCI

O COMÍCIO em praça pública já era. Hoje, não passa de uma lembrança folclórica, mais ou menos como o bumba-meu-boi, o saci-pererê, Jânio Quadros e amendoim em estádio de futebol. Palanque já era. Candidatos que faziam corpo-a-corpo, caravanas que percorriam o interior em linhas tortuosas, como a Coluna Prestes, cabos eleitorais que perseguiam eleitores nas cercanias dos lugares de votação, como traficantes perseguem adolescentes nas esquinas das escolas, tudo isso é passado, são práticas primitivas e pouco produtivas. Persistem apenas como nostalgia. Ou, no máximo, persistem como complementos de estratégias muito mais complexas. Desde 1989, o "modus operandi" das campanhas eleitorais passou por uma intensa reengenharia no Brasil. Virou uma indústria especializada ou, mais exatamente, virou um ramo especializado da indústria do entretenimento. O seu palco não é mais a rua: é a televisão.
Em 2002, os comícios ainda acontecerão, por certo, mas acontecerão nas brechas deixadas pelos compromissos prioritários dos candidatos: aparições televisivas. A ida de um candidato a uma cidade terá agora uma função meramente complementar: a de reforçar a mensagem trabalhada na TV. Os candidatos, que antes visitavam municípios, e tinham nisso uma prioridade, agora percorrem programas de auditório, programas de entrevistas, programas de debates. São andarilhos virtuais. A geografia em que se movem não é mais aquela das linhas ferroviárias (sempre havia um vagão que servia de púlpito ao candidato em trânsito, o postulante ambulante, o orador mambembe). Sua nova geografia é a grade de programação dos canais abertos.
Campanhas eleitorais como a que veremos neste ano constituem a principal evidência de um fenômeno muito recente, mas crucial: a TV recobre e substitui os espaços físicos. Minutos no horário eleitoral se convertem na principal moeda de troca na hora de se negociarem as alianças. Um marqueteiro passa a valer mais que mil ideólogos. Vale milhões de dólares. Pode valer a faixa de Presidente da República.
Não que os marqueteiros tenham poderes mágicos sobre eleitores passivos e teleguiados. Não é isso. Acontece que a linguagem da campanha, que antes era o discurso político, passou a ser a linguagem da publicidade. Eu não quero dizer que a publicidade seja mais ou menos racional que o discurso político: é apenas outra língua. Antes, o discurso político até se valia de um certo marketing, no sentido de que lançava mão de recursos teatrais. Jânio Quadros, por exemplo, usava sanduíches de mortadela para comover a audiência. A diferença é que, hoje, em vez de o discurso político ter o seu marketing artesanal, o marketing, ou melhor, a megaindústria do marketing é que contém a política. A política se tornou uma das especializações do marketing.
Ideólogos, que entram em extinção como as ararinhas azuis, não falam a língua do marketing. Por isso, pobrezinhos, são tão inúteis quanto um fogão a lenha. O público de eleitores, essa vasta platéia de consumidores vorazes, já não tem ouvidos para ideólogos, mas compreende perfeitamente os apelos publicitários. Talvez não tenham mudado as motivações que levam um cidadão a votar neste ou naquele político, mas mudou, certamente, a língua que esse cidadão reconhece como sendo sua. Claro que ele é capaz de formar seu próprio juízo das coisas ou, pelo menos, é tão capaz como sempre foi, nem mais nem menos. Hoje, porém, prefere ver um comercial partidário ou uma entrevista de TV, e dali tirar sua opinião, a ter de se arrastar até um comício sob o sol para divisar a fisionomia de quem lhe pede confiança.
É isso o que significa dizer que a política, hoje, é resolvida segundo os paradigmas do consumo, da imagem eletrônica e do entretenimento. Praça pública, ora essa. Isso é do tempo em que as bandinhas bufavam em cima dos coretos.



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